Paris brilha para o mundo, mas os habitantes sentem-se na sombra
Mika e Raika moram na rua, a poucos metros de onde vai passar a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos

JOGOS OLÍMPICOS Paris brilha para o mundo, mas os habitantes sentem-se na sombra

JOGOS OLÍMPICOS26.07.202408:30

A 'cidade Luz' promete uma cerimónia de abertura como nunca antes visto… mas quem lá mora foi posto de parte; A BOLA fez um tour menos turístico nas imediações do Sena

Mika teve sorte. A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos calhou mesmo no dia em que ele chega aos 41 anos. E logo na cidade onde ele mora. Só duas ruas abaixo do local onde o encontramos com a cadela Raika.

E também é quase um acaso que ele possa estar ali. A tal sorte de que ele fala. Afinal, mais de 12 mil pessoas como ele foram varridas para fora de Paris nos últimos meses.

Porque com os olhos de todo o Mundo voltados para a capital francesa, o governo achou que as pessoas sem-abrigo não ficavam bem na fotografia.

Nesta sexta-feira, quando os quase 100 barcos das comitivas desfilarem pelo rio Sena, num momento histórico do olimpismo, porque pela primeira vez a cerimónia de abertura será feita fora de um estádio, o Mika e a Raika não vão ser o centro das atenções.

Ao longo do percurso que os barcos vão percorrer na cerimónia de abertura, há vários espaços emblemáticos

Mas ele até garante que vai ver a cerimónia!

«Sim, estou a contar ir. Há algumas formas de chegar lá. Sendo aqui tão perto, tinha de tentar», explica, sentado no colchão dentro da tenda sem tirar os óculos nem o chapéu à cowboy durante toda a conversa com a reportagem de A BOLA.

Quando o abordamos, diz que fala sem problema. Até oferece uma almofada para não termos de nos sentar no chão durante a conversa, a mostrar hospitalidade.

E essa será a única semelhança entre Mika e o país onde nasceu, nesta antecâmera da 33.ª edição das olimpíadas. O querer receber bem quem vem de fora. «A preparação deste evento obrigou a França a renovar-se um pouco. Acho que é bom para o país e a cidade porque vão estar no centro das atenções», analisa, compreensivo com as mudanças que tiveram de ser impostas.

Mika nem sempre foi assim, benévolo. Conta que conseguiu ser dos poucos a permanecer nas ruas da cidade porque não tem problemas com droga.

«O meu problema sempre foi a violência. As minhas mãos parece que ganham vida própria», brinca, ensaiando uns murros no ar.

«Cresci numa família destruturada, fui uma criança que nunca recebeu afeto e na adolescência refugiei-me na criminalidade. Já estive preso quatro vezes, mais de 10 anos no total, mas saí há dois e não quero voltar», assegura.

Apesar de terem sido tirados milhares de sem-abrigo das ruas de Paris para outras cidades, alguns ainda tentam sobreviver na capital

«Por mim, não havia Jogos em Paris»

Ainda mais perto de onde vai passar a cerimónia do que Mika, está Sonia. Mas com um discurso bem menos compreensivo.

Talvez não ajude o cenário em que a encontramos: debruçada sobre o balcão de um espaço comercial completamente vazio.

«O negócio está muito calmo. Demasiado calmo, e tudo por causa dos Jogos Olímpicos. Há uma semana que montaram aquelas grades do outro lado da rua e quase não entram clientes», lamenta, ainda que sem perder o sorriso.

Da porta da Boulanger patisserie – onde até há pasteis de nata! – vê-se uma das pontes por baixo das quais vão passar grande parte dos melhores atletas do mundo na cerimónia que arranca às 18h30 (mais uma hora em França). Mas esse privilégio tornou-se numa maldição nos últimos dias.

Devido à proximidade ao Rio Sena, a pastelaria de Sonia perdeu muitos clientes na última semana

«Os parisienses não são, de todo, a prioridade. Por mim, não havia Jogos Olímpicos em Paris. Isto só nos veio causar problemas, com tanta confusão em todo o lado. E perdemos muito dinheiro por causa disto. As pessoas têm mais dificuldade em passar para o nosso lado, e muitos dos moradores saíram daqui nestes dias porque até para entrar em casa precisam de ser controlados pela polícia», nota.

Essa é uma realidade que encontramos ao virar de cada esquina. E quanto mais perto do curso do Rio Sena, maior é o controlo.

Até a Catedral de Notre Dame passou a ser vista através de grades

A zona central de Paris ganhou centenas de checkpoints nos últimos dias. E para entrar, seja morador, seja trabalhador, todos têm de mostrar um QR Code nos seus telemóveis, acompanhado da respetiva identificação.

Isso causa, nas horas de maior movimento, autênticas filas de gente para entrar nas zonas residenciais após o dia de trabalho, o que interfere depois também com o trânsito – já para não falar da quantidade de estradas completamente cortadas às viaturas a motor.

Apesar das dificuldades do negócio, Sonia não perde o sorriso: «É muito importante mantê-lo»

«Viemos na véspera porque a cerimónia é muito cara»

Um dia antes de Paris 2024 arrancar oficialmente, A BOLA tentou fazer os cerca de 6 quilómetros do percurso que começa na Ponte de Austerlitz e termina no Trocadero.

E esses quilómetros multiplicaram-se por muito mais – bendita bicicleta! – porque há zonas em que a polícia obriga todos a circular muito longe do leito do rio. Noutras partes, as grades foram tapadas além de se prever que o perímetro seja ainda mais estreito, tendo em conta os milhares de barreiras arrumadas para serem distribuídas pelas ruas nesta sexta-feira.

Odile sobe a uma das grades para conseguir ver melhor o cenário que está a ser montado no leito do Sena

Foi num passeio já muito apertado por essas barreiras que encontrámos André e Odile, um casal de cerca de 60 anos que veio espreitar o que está a ser preparado e que terá 326 mil pessoas a assistir ao vivo, e não as 600 mil inicialmente previstas.

«Como não conseguimos vir amanhã, porque a cerimónia é muito cara, viemos espreitar na véspera», explicou o casal de Montmartre, assumindo a loucura que seria investir os 2.700 euros de custo dos bilhetes.

Odile e André lamentam a impossibilidade de assistir à cerimónia de abertura, que incialmente previa abertura para 600 mil pessoas

Ou seja, das pessoas com quem o nosso jornal falou, apenas Mika tem intenção de ir ver a cerimónia. Mas ele não comprou bilhete e, apesar de não revelar como vai fazer, garante que não se trata de nenhuma ilegalidade.

«Desde que tenho a Raika, há mais ou menos três meses, ela mudou a minha vida. Faz-me querer aproveitar a vida. E tenho a responsabilidade de cuidar dela. Isso faz-me manter focado e ajudou-me a mudar o meu estado de humor. Deixei de estar constantemente deprimido», orgulha-se.

Por isso, enquanto gente de todo o mundo estiver encantado com a grandiosidade que se espera da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, Mika e Raika estarão a aproveitar para celebrar as pequenas coisas da vida.

Mas porque não fazê-lo a olhar para o Sena num dia tão especial? 

As margens do Rio Sena vão receber mais de 300 mil pessoas na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos