«Maratona é caixinha de surpresas, mas posso bater o recorde nacional»
Samuel Barata é o mais promissor fundista português da atualidade (DR)

«Maratona é caixinha de surpresas, mas posso bater o recorde nacional»

ATLETISMO23.11.202308:00

Samuel Barata tem dois sonhos a curto prazo: garantir a qualificação para os Jogos Olímpicos de Paris e bater o recorde nacional da maratona, que pertence a António Pinto desde 2000. Está há três semanas no Quénia a preparar a prova de Valência, a 3 de dezembro

Aos 30 anos e já com uma marca de 2.10 horas à maratona, Samuel Barata tem dois sonhos a curto/médio prazo: garantir a qualificação olímpica para Paris e bater o recorde nacional da maratona. Continua no Quénia a preparar a prova de Valência.

- A preparação final para a próxima maratona passa muito por este estágio em altitude no Quénia. É imprescindível?

 — Tive a sorte de ter integrado um grupo treinado pelo professor Pedro Rocha, que tinha uma ideia muito focada: se queremos evoluir, temos de fazer o que fazem os melhores da Europa e do mundo. Ou seja, estágios em altitude como preparação específica para competir ao mais alto nível. Em 2015 tive oportunidade de ir para Font Romeu [sudoeste de França, a 1850 metros de altitude] e, a partir daí, fui sempre uma vez por ano para a altitude. Depois, em 2019, fui pela primeira vez para o Quénia com o Emanuel Rolim [3.37,16 aos 1500 m], e integrámo-nos no grupo do Tomasz Lewandowski e do Marcin Lewandowski, que ganhou n medalhas em 800 e 1500 metros. Foi um estágio muito bom, não só a nível fisiológico, pois, com se sabe, a altitude ajuda a produzir glóbulos vermelhos, mas também porque saí da minha zona de conforto e cresci como pessoa e como atleta. Depois, quando vamos para uma competição internacional, tudo se torna menos complicado, porque estamos habituados a estar fora dessa zona onde nos sentimos confortáveis. Além disso, como treinamos com atletas que julgamos que são melhores do que nós, vemos que, afinal, também temos condições para lutar com eles em plano de igualdade. Abre-nos a mente. Sinto que, sobretudo nestes últimos dois anos, a minha grande evolução foi mais mental, pois já treino muito e bem há muitos anos.

— Como é a sua vida no Quénia?

 — Estamos em Iten, uma pequena vila a 30 quilómetros de Eldoret, uma cidade maior. Viajamos de Nairobi para Eldoret num voo de 50 minutos. Iten não tem quase nada, serve basicamente para treinar. É aqui que estão vários dos melhores grupos de treino do Quénia. Aqui ou em Kaptagat. Agora é também uma espécie de centro de negócios, pois vários atletas abriram lá centros de treino. A minha vida é, basicamente, levantar, treinar, almoçar, descansar, voltar a treinar de tarde, jantar e dormir.

— A alimentação é muito diferente da ocidental? 

— Sim, bastante, mas depende do sítio onde estamos. Há centros de estágio cuja alimentação é muito parecida com a da Europa e outros com alimentação mais queniana. Esta inclui pouca carne, quase tudo à base de lentilhas, feijão, leguminosas. Há pratos típicos como ugali, farinha de milho cozida com sal, nada mais. Não gosto muito, mas é muito rica em hidratos de carbono. Chapati é um pão indiano, que eles comem muito. O resto é à base de arroz, massa, feijão, lentilhas, legumes e pouca carne. A carne é de borrego, frango ou vaca. Não comem porco, por exemplo.

— É um investimento muito elevado? 

Samuel Barata em Iten (Quénia) com o seu treinador António Sousa e ainda com Nuno Pereira

— O centro de estágios já tem preços ao nível da Europa, pois quem o gere são europeus. Mas se sairmos do centro de estágio e formos a um café ou a um restaurante é tudo baratíssimo. Bebes uma Coca Cola por 20 ou 30 cêntimos, por exemplo. Conheço atletas que estão em casa de quenianos e, aí sim, é tudo ainda muito mais barato. Porém, o risco de doenças é maior, por causa das águas potencialmente poluídas.

— Rosa Mota talvez tenha sido a primeira atleta em Portugal a reconhecer a importância dos estágios em altitude, pois já os fazia no Colorado há dezenas de anos. 

— Sim, ela terá sido, em Portugal, a pioneira. Noutras disciplinas, como natação, triatlo e ciclismo, o treino estava muito mais evoluído que no meio-fundo. Houve um buraco muito grande no tempo em que quase ninguém fazia treinos em altitude, com exceção da marcha, com a Susana Feitor e a Ana Cabecinha, por exemplo. No meio-fundo acreditou-se sempre muito que não era preciso fazer estágios em altitude e que bastava estar em Portugal a treinar para competir de igual para igual. Agora, os grandes meio-fundistas estão todos a treinar em altitude para preparar maratonas, Mundiais de corta-mato ou provas de pista coberta. São eles que vão fazer os grandes resultados.

— Começa a haver um ponto de viragem no meio-fundo português? 

— Sem dúvida. Temos miúdos em Font Romeu a preparar o apuramento para o Campeonato da Europa, porque sabem que, como o nível internacional está tão alto, se ficarem em Portugal não vão conseguir. Depois, além da altitude, o treino é cada vez mais científico, pensado e estruturado, com testes de lactato, força e VO2 máximo, por exemplo. Saber treinar em doses certas e sem ser à bruta, como muitas vezes acontecia no passado.

— O investimento é suportado por quem? 

— Foi uma construção. O investimento nos meus primeiros estágios foi todo suportado por mim. No primeiro ou segundo estágio que fiz em altitude tive de o financiar correndo antes duas provas pequeninas no norte de Portugal no mesmo dia, o que não recomendo a ninguém. Sem elas, não teria dinheiro suficiente para investir no estágio.

— Duas provas no mesmo dia? É durinho… 

— Sim. Uma prova de 10 km de manhã e uma milha de tarde para ganhar 200 ou 300 euros em cada uma delas para poder pagar os estágios. Agora, como tive resultados, consigo ter alguns patrocinadores, como o Lidl, por exemplo, e a federação, embora continue também a investir um pouco do meu próprio dinheiro.

— Mas já está integrado no Projeto de Preparação Olímpica…

 — Sim, já. Entrei mesmo agora.

— Apostando tanto na maratona, dificilmente haverá grandes marcas nos 10 000 metros. É assim?

 — Não necessariamente. Pode parecer um contrassenso, mas o treino para a maratona ajuda-me a correr mais rápido. Os meus melhores resultados em provas mais curtas foram conseguidos depois de ter treinado para a maratona.

— Porquê a maratona e não os 10 000 metros, por exemplo?

 — A quota olímpica para os 10 000 metros é muito curta: 27 atletas. Se pensarmos em três quenianos, três etíopes, três ugandeses, três americanos, mais uma série de belgas e italianos naturalizados, já chegamos quase a 20 dos 27 atletas. E a marca de qualificação direta para Paris é 27 minutos exatos.

— Seria preciso fazer marca em cima do recorde nacional do António Pinto… 

— Isso. É surreal. Tinha de correr 27.20, por exemplo, esperando que no ranking estivesse no top-27 e não sei se dava.

— E na maratona? 

— A quota é de 80 atletas e a marca de qualificação direta é de 2.08.10 horas e eu tenho 2.10. Estou no lugar 62. Ou seja, a probabilidade de ir aos Jogos pela maratona é muito maior. Gostava de ir aos Jogos pelos 10 000 metros, mas na maratona é mais fácil.

—E é menos complicado garantir uma boa classificação… 

— Sim, é verdade.

— Com 59.40 à meia-maratona é possível sonhar com o recorde nacional da maratona?

 — Teoricamente, sim. É estranho porque corri muito em Brazov, com 27.45 nos 10 km em estrada…

— … com os tais 25 metros a menos… 

— Sim, foi pena, pois se a distância estivesse correta, faria cerca de 27.50. Treinei muito bem para Riga [Campeonato do Mundo de estrada] e fiz 1.01.29 h e passadas três semanas fiz 59.40 minutos. Sabia que estava bem para correr abaixo de 1.01 horas, mas nunca pensei ser possível fazer menos de uma hora. Agora, correr a três minutos ao quilómetro na maratona é quase como ir a passear. Ou seja, poderei fazer cerca de 2.06 horas. Mas é uma maratona! Aos 35 km posso estar super e aos 37 posso estar na valeta. Uma meia-maratona é muito diferente de uma maratona. A maratona é uma caixa de pandora, uma caixinha de surpresas.

— Qual o tempo realista? 

— Duas horas e oito minutos. Ou seja, marca direta para os Jogos. É o cenário mais realista, caso a preparação no Quénia termine bem, se não tiver leões, nem doenças. Há um ano talvez não acreditasse ser possível, mas agora, com a ajuda do professor António Sousa, sinto que pode acontecer. Há uns meses, estávamos a ver o Isaac Nader na final dos 1500 metros e o professor disse que ele estava a sentir a magia de que podia acontecer algo importante. Posso parecer pouco humilde, mas estou a sentir o mesmo: a magia de que algo grande pode acontecer e ficar perto do recorde nacional.

— Que significado tem ir aos Jogos Olímpicos? 

— É um sonho de vida e de carreira. O ponto mais alto de carreira. Mas não quero apenas ir por ir, quero ser competitivo. Gosto de sentir que, nos últimos dois ou três anos, os outros atletas já têm respeito por mim. Faz bem ao ego e dá-me confiança.

— Paris é dentro de menos de um ano. E Los Angeles em 2028? 

— Ainda me vejo a ir lá, sim. Vou ter 35 anos em 2028 e, se tudo correr bem, é possível chegar lá, mas depende sempre do meu corpo e da porrada que lhe damos diariamente.

— Quantos quilómetros faz por dia nesta fase? 

— Cerca de 30.

— Em 2028, poderá haver mais portugueses nos Jogos Olímpicos? 

— Há uma geração muito boa nos homens. O Etson Barros está uma máquina nos 3000m obstáculos, mas pode fazer uns bons 5000m e até 10000m. O Isaac Nader pode fazer muita coisa boa neste ciclo olímpico e depois chegar a 2028 no pico. Duarte Gomes, Alexandre Figueiredo, Bernardo Rocha e a Mariana Machado nas mulheres. Temos de investir cada vez mais em estágios de altitude e noutro tipo de treino.

— O ideal é fazer quantos estágios anuais em altitude?

 — Depende dos objetivos, mas no mínimo dois. Um no inverno, outro no verão.

— E a família aceita bem? 

— Num dos estágios que fiz em Font Romeu e a minha namorada esteve comigo uma semana. Tentamos ajustar as coisas para ela se sentir integrada, pois também vive intensamente o que faço. O próximo ciclo olímpico talvez seja diferente, porque ela quer ser mãe.

— Já se pode saber que maratona vai correr? 

— Sim, não há problema em divulgar. Vou a Valência a 3 de dezembro.

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