Sporting joga na cidade onde a pandemia deixou marcas profundas
A histórica Cidade Alta de Bérgamo contemplada desde a zona mais moderna. MIGUEL NUNES/ASF

Sporting joga na cidade onde a pandemia deixou marcas profundas

INTERNACIONAL30.11.202308:05

Bérgamo foi o primeiro epicentro europeu da Covid-19; um jogo de futebol deu que falar mas a bomba biológica não foi só aquele Atalanta-Valência de fevereiro de 2020…

BÉRGAMO – A imagem de uma fila gigante de camiões militares a atravessar a cidade em marcha lenta, no meio de um silêncio fúnebre, jamais sairá da memória dos habitantes de Bérgamo – era dia 18 de março de 2020 e naqueles veículos verde tropa seguiam os cadáveres de vítimas de Covid-19. Com a região da Lombardia no epicentro em Itália de uma doença que não tardou em alastrar por toda a Europa e por todo o Mundo, os hospitais, os cemitérios, as igrejas não tinha mais capacidade para acolher tantas vítimas – no dia seguinte, o país acordou como o 1.º na lista de mortes por Covid, a maioria naquela região.

A imagem que Bérgamo jamais esquecerá. D. R.

Um mês antes, a 19 de fevereiro de 2020, mais de 45 mil pessoas tinham seguido de Bérgamo para Milão para assistir a um jogo de futebol. A Atalanta nunca tinham jogado na Liga dos Campeões e em época de estreia chegava logo aos oitavos de final, pela mão do treinador Gian Piero Gasperini, que em 2016 substituíra Edy Reja e que logo inventou uma forma de jogar à Atalanta – ainda hoje a promove, esta quinta-feira frente ao Sporting na 5.ª jornada do Grupo D da Liga Europa, e bem frescas na memória dos leões as dificuldades que em Alvalade, na 1.ª volta e sobretudo na primeira parte, este estilo de jogo impôs à equipa de Rúben Amorim (1-2). O Valência era o adversário, os italianos venceram por 4-1 e fizeram a festa. Euforia coletiva em San Siro, estádio escolhido para realizar o jogo dada o facto de este não poder ser no estádio em Bérgamo, sem condições para tal, abraços e gritos de golo a plenos pulmões, mas também nas ruas, cafés e restaurantes da cidade natal da Atalanta onde os tifosi fizeram festa inédita na história do clube.

Adeptos da Atalanta no jogo de Milão com o Valência. IMAGO/NURPHOTO

Hoje, quase quatro anos passados e depois de dois em que nos habituámos todos a restrições que fizeram parte do nosso quotidiano, até nos esquecemos que naqueles tempos quase ninguém tinha o distanciamento social como uma exigência fundamental para ajudar a não propagar mais um vírus que entretanto passámos a tratar por tu. Naquele dia, apesar de já haver casos de Covid-19 em Itália, ninguém poderia imaginar que naquele mítico estádio emprestado à Atalanta tivesse rebentado uma bomba biológica – naquele dia não se tinha ainda registado qualquer caso em Bérgamo ou Milão, um mês depois, a primeira registava 3800 casos, a segundo cerca de 5 mil.

«A concentração de milhares de pessoas, ainda mais associadas a compreensivas manifestações de euforia, gritos, abraços, pode ter favorecido a propagação viral», reconheceu na altura, ao Corriere Della Sera, o médico infetologista Francesco le Foche. Depois das autoridades italianas, também a Organização Mundial da Saúde endereçou críticas à UEFA por ter permitido a realização do jogo. «Foi um acelerador da propagação do vírus» e representou «momento-chave» na propagação na cidade Bérgamo – seis dias depois do encontro, quando Itália registava ainda apenas 288 casos confirmados, começaram a ser identificados adeptos infetados que tinham assistido à partida.

Naquela altura ainda não se falava em distanciamento social. IMAGONURPHOTO

«Não sabíamos o que estava a acontecer, se o vírus já estava em circulação, os 45 mil adeptos que estiveram em San Siro foram infetados. Ninguém sabia que o vírus estava a circular por ali», contou o presidente da câmara de Bérgamo, Giorgio Gori ao TuttoSport.

Naquela época não existiam ainda protocolos, quarentenas, nenhuma ação mais efetiva na Europa. Aquele jogo ajudou a colocar a região no epicentro da pandemia mas não foi a única bomba a explodir na Lombardia.

Mais do que o futebol…

«O jogo foi um fator mas o que aconteceu no Hospital Pesenti Fenaroli, de Alzano Lombardo, é talvez a explicação mais plausível. Não sabemos exatamente quando mas um doente apareceu com pneumonia e os sintomas não foram reconhecidos. O paciente estava junto de outros pacientes, que se infetaram, assim como médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde», apontou o Giorgio Gori na altura. A direção do Hospital quis avançar para encerramento mas horas depois, sem desinfeção das instalações e sem isolar os pacientes de Covid-19, o funcionamento da unidade continuou normalmente – sem qualquer tipo de proteção, durante uma semana, os trabalhadores acabaram por ser infetados e disseminaram o vírus entre a população.

A 23 de fevereiro, os autarcas locais esperavam a ordem para encerrar a cidade – os regulamentos estavam escritos, o exército mobilizado, a polícia preparada e as tendas estavam montadas. Mas a ordem nunca chegou. O que chegava eram muitos contactos de empresários da região, donos de fábricas, sem disfarçar a preocupação para não fecharem as unidades fabris.

A homenagem dos italianos aos profissionais de saúde nas paredes de um hospital da Lombardia. DR

Na região mais rica de Itália, essas fábricas ficaram abertas, a funcionar, ao mesmo tempo que os caixões enchiam os camiões do exército cuja imagem, a atravessar as ruas de Bérgamo, continua viva na memória dos locais – em março de 2020 o número de mortos na cidade foi 400 por cento superior ao período homologo do ano anterior.

Noutras cidades da Lombardia bastou meia centena de casos para serem decretadas como zonas vermelhas, em Bérgamo, por incrível que possa parecer, isso nunca aconteceu. Conta-se agora por ser lá que se encontram alguns dos polos industriais mais importantes de Itália e os empresários, alguns  com interesses também na área da saúde, pressionaram as instituições para evitar o encerramento – a associação de empresários industriais italianos, a Confindustria, que reúne 1200 empresas que empregam 80 mil trabalhadores, lançou até campanha nas redes sociais como mote Sim, Nós Trabalhamos; Bérgamo Não Para foi o mote lançado pelo autarca Giorgio Gori, que perante a evidência dos números da pandemia já confessou arrependimento. A 23 de março de 2020, quando a região já registava quase 10 mil casos positivos a Covid-19, as fábricas continuavam todas a laborar normalmente, uma semana mais tarde, já com decreto para o suspensão de «todas as atividades produtivas não essências», ainda havia 1800 fábricas abertas.

As memórias e o presente

Bérgamo tem 120 mil habitantes. Fica a cerca de 50 quilómetros de Milão e jamais esquecerá aqueles dias de pandemia. O mundo inteiro jamais esquecerá mas esta cidade italiana, por ter sido o primeiro epicentro europeu, sente-o profundamente – a procissão de camiões militares carregados de cadáveres, os caixões acumulados nas igrejas, até o facto de o jornal L’eco di Bergamo ter visto, de repente, uma ou duas páginas de obituário passarem para 11, «um boletim de guerra», recordou o diretor da publicação Alberto Ceresoli, tudo são memórias que ficam para sempre, fundo.

Hoje, Bérgamo volta a dar as boas-vindas a quem a visita. MIGUEL NUNES/ASF

Na altura, foi o medo mas também a solidariedade para com os que choraram. Hoje, nas ruas de Bérgamo, a vida voltou ao normal. As fábricas (também as que fecharam) estão a laborar; na Cidade Alta, onde fica o centro histórico, os edifícios continuam coloridos a exaltar a clássica Itália e as ruas labirínticas continuam a desaguar na Piazza Vechchia, onde os cafés e as geladarias fazem os prazeres típicos da dolce vita. E a Atalanta continua a encantar os adeptos. Agora na Liga Europa, agora com o Sporting pela frente. Mas neste caso, os leões querem que os tifosi locais não gozem dos prazeres dessa vida doce…

A Piazza Vecchia de Bérgamo vai hoje receber os adeptos do Sporting