Reportagem A BOLA, em Riade «Sinto que tenho de chegar a uma grande liga europeia»
Fomos recebidos por Vitor Pereira na casa onde vive na Arábia Saudita e se alimenta desta droga chamada futebol
Fomos até Riade ao encontro de Vítor Pereira. O treinador do Al Shabab recebeu-nos na casa onde vai viver esta época, junto dos adjuntos que o acompanham nesta aventura na Arábia Saudita. Vítor Pereira não esquece o passado, principalmente as conquistas pelo FC Porto, e nesta conversa com A BOLA e o Maisfutebol deixa claro que ainda tem metas a atingir.
Que objetivos é que este Al-Shabab tem para esta temporada?
O campeonato saudita tem quatro equipas, claramente, com um investimento muito superior ao das outras equipas que é o Hilal, do Jesus, o Nassr, que era do Luís Castro, o Ittihad do Benzema, e Ahli que tem também jogadores de grande nível, até para a Europa. Depois temos aqueles clubes que são privatizados, como é o Quadisiya, que veio agora da segunda divisão, mas que também investiu muito dinheiro, e o Ettifaq que também é privatizado. Depois há as outras equipas, entre as quais está a nossa, que estão à espera de privatização, mas que, no entanto, temos de fazer pela vida… Nós fizemos uma boa equipa este ano. Tivemos sorte mesmo nos últimos dias de mercado, porque vendemos um jogador, o lateral-esquerdo. Com essa venda ao Hilal conseguimos dinheiro que nos permitiu ter um 11 mais ou menos competitivo para a realidade do clube. Portanto, eu falei de seis equipas. Depois há o resto… Parecem dois campeonatos. Há coisas a rever para tornar o campeonato mais competitivo e diminuir este fosso de uns para os outros. Nós vamos lutar. Acredito que com os quatro do PIF é complicado, mas vamos lutar como um Vitória de Guimarães em Portugal.
A Arábia Saudita está muito diferente de 2013/2014 quando treinou o Ahli?
Sim tenho de reconhecer que quiseram evoluir em muitos aspetos, lembro-me que há 12 anos, as condições de trabalho, essencialmente dos relvados e dos estádios não eram boas. Agora há muitos relvados melhores do que em Portugal. Depois a qualidade dos jogadores, evidentemente, pois o investimento é muito maior, o número de estrangeiros passou para mais do dobro. Neste momento, podemos ter 8 estrangeiros, mais dois sub-23. São 10 estrangeiros. No meu tempo, tínhamos quatro. O nível de estrangeiros aumentou muito. A arbitragem melhorou também e há muitos árbitros estrangeiros a virem de fora apitar aqui e o nível dos árbitros sauditas também evoluiu. A organização dos clubes apesar de terem evoluído, tem de se dar mais uns passos.
Como por exemplo?
Têm de rever este investimento dos fundos para criar mais aproximação entre os clubes. Têm de diminuir o fosso, para que a liga seja mais competitiva e para que não se assista ao que se passou no ano passado em que todas as finais foram jogadas entre o Hilal e o Nassr. Para que o futebol saudita evolua eles têm de investir nas academias, claramente, e na formação dos jogadores, e dos treinadores. É um investimento que, tem de ser feito, se não acontece como na China: olham só para o topo da pirâmide e esquecem-se da base. Precisam rever as equipas sub-23 pois deixou de haver esse campeonato. No ano passado, chamava muitos jogadores dos sub-23 para integrar na equipa principal, pois é um espaço de transição muito importante, que me permitia trazer os miúdos para trabalhar connosco. Hoje estaria em condições de chamar pelo menos quatro à primeira equipa para potenciar a formação. Neste momento, quando quero chamar um miúdo da Academia, chamo um jogador sub-18, que é a equipa a seguir à nossa, que tem 17 anos e não está minimamente preparado. O fosso que há entre a equipa sub-18 e a A é enorme. Se não quiserem apenas ter um campeonato mediático e ter sim uma evolução do jogador local e dos treinadores há ainda investimentos a serem feitos. Digo isto não como critica, mas como uma reflexão que precisa de ser feita.
Um treinador depois de estar na Arábia continua a ter o mesmo mercado?
Antigamente os treinadores que vinham estavam em final de carreira e, dizia-se, para a reforma dourada. Neste momento é diferente, um treinador da liga inglesa vem treinar na Árabe Saudita e volta para a liga inglesa outra vez. Sinceramente, tenho visto muitos treinadores que vêm cá, depois saem e vão para ligas importantes. Não é uma Liga que só se vem por dinheiro, porque senão eu não tinha vindo. O meu clube não é um clube financiado pelo governo, não é endinheirado e paga um salário normal, e já ganhei muito mais até. Agora, porque é que eu vim? Vim porque prefiro, para não cometer erros de decisão de carreira. Eu cheguei à conclusão que esta droga que eu tenho, que é uma droga, que eu ainda não consegui desmamar, faz com que não consiga estar muito tempo sem treinar. Os meus erros em termos de decisão de carreira têm sido sempre naqueles momentos em que estou fora e começo a perder a paciência. E, depois às vezes não vou para os projetos que devo ir. Eu prefiro estar no ativo, a experimentar coisas novas, porque o futebol para mim é a expressão criativa, aquilo que eu tenho dentro de mim e que tenho necessidade de criar constantemente coisas novas, exercícios novos, formas de jogar… Em vez de eu estar a criar do ponto de vista teórico, prefiro criar algo e experimentá-lo. Portanto, a minha decisão de vir para aqui foi em vez de ficar à espera do projeto em casa, vim. As pessoas do Shabab consideram muito o nosso trabalho, eu já conhecia o clube, já conhecia a realidade e decidi vir.
O dinheiro não paga tudo?
Não, não. Durante muito tempo justificava a minha vinda para o estrangeiro no sentido de ter oportunidade de garantir o futuro financeiro dos meus filhos. Até que, um dia, o dinheiro já chegava para o futuro deles e para o futuro dos filhos deles. E eu continuava a vir para fora. Portanto, a verdadeira razão de eu vir é porque o futebol para além de uma grande paixão continua a deixar-me, não sei, a sensação que eu tenho é que tenho de pintar um quadro que nunca pintei. Tenho de realizar alguma coisa que ainda não realizei. É esta insatisfação que me move a paixão e o facto do futebol, para mim, me permitir criar. Eu tenho necessidade de expressar o meu lado criativo e faço-o através do futebol. Crio exercícios, conceitos novos, experimento.. O pegar numa equipa e fazê-la evoluir, é como estar a pintar esse quadro. Ir pintando um quadro ao longo dos anos até que o futebol me satisfaça, até que eu sinta um prazer muito grande em ver o futebol que criei. Em ver esse quadro que pintei. É esse lado criativo e é também uma droga que eu já percebi que não é fácil viver sem ela. E eu tenho muita dificuldade em estar parado. O futebol, quem diz que o futebol já foi todo inventado, está completamente enganado. Eu estou sempre a ver esta gente, estes Da Vinci do futebol, que trazem coisas novas, que trazem ideias novas, que transformam o futebol na maravilha que é. Estão sempre a surgir coisas novas, conceitos novos. Eu há 10 anos pensava uma coisa e hoje já não faço da mesma forma, e faço de forma completamente diferente. Porque a evolução levou-me a entender as coisas. Por isso é que eu digo que todos os dias estudo futebol. E o que é estudar? Estudar é analisar, as grandes equipas, é perceber e depois criar aquilo que nós pretendemos para o jogo e que me faz estar apaixonado até hoje.
Ao fim destes anos todos tomou sempre as decisões certas?
Toda a gente tomou decisões que se pudesse voltar atrás… Eu sou muito de sentir, muito emocional. E houve momentos de facto que eu tive pouca paciência, e até falta de paciência, e devia ter esperado mais um bocadinho e provavelmente o trajeto teria sido outro, mais europeu e ligas importantes.. Mas, esta experiência alargada com títulos na Grécia, a dobradinha, em Portugal com dois títulos conquistámos, depois o ir à China e fazer uma coisa que nunca tinha sido feita, num clube que nunca tinha ganho o campeonato, quebrando o ciclo de um adversário que ganhava há sete anos consecutivos… Depois tive a possibilidade de trabalhar na Turquia, com jogadores de qualidade que me orgulho agora de ver no Real Madrid ou em Inglaterra. Tenho de me sentir orgulhoso do trabalho que fizemos, agora há muito mais para fazer. Continuo a sentir que tenho de chegar a uma grande liga europeia, e aí sim, estes anos todos no laboratório tenho de ser postos à prova.
Se fosse hoje, o que é que não tinha sido feito?
Tinha de ter mais paciência para esperar. Começou logo quando saí do FC Porto. Estou convencido que se tivesse esperado mais um bocadinho eu teria entrado numa liga europeia, dessas das melhores ligas. Também quis pensar nessa altura no dinheiro, pois nunca tinha ganho dinheiro a sério. Vim para a Arábia Saudita nessa altura, ganhar dez vezes mais do que no FC Porto. Aí sim foi a pensar nos meus filhos. A pensar que o futebol pode acabar de um momento para o outro e tinha ali a oportunidade de garantir o futuro deles, em termos financeiros. Agora, passado 12 anos, eu não tinha necessidade nenhuma de vir para a Arábia Saudita. Vim porque quero estar no ativo e quero ajudar o clube a evoluir. Há, de facto, alguns passos na minha carreira que eu não devia ter dado. Esse, provavelmente, foi um deles, do ponto de vista desportivo. Do ponto de vista financeiro, foi bom. E houve outros. Houve outros que não vou estar aqui a enumerá-los, mas com mais paciência já poderia ter passado por Inglaterra, já poderia ter ido a Espanha.