Ricardo Sousa: «Arábia Saudita? No início foi um choque, mas experiência está a ser positiva»
Técnico português orienta atualmente o Al-Ain, da segunda liga da Arábia Saudita. (Foto: D. R.)

ENTREVISTA A BOLA Ricardo Sousa: «Arábia Saudita? No início foi um choque, mas experiência está a ser positiva»

Técnico português orienta o Al-Ain, da segunda liga árabe; as dificuldades da adaptação, o contexto do clube e a competitividade do campeonato

Como foi a adaptação à Arábia Saudita e ao Al-Ain?

Tenho de admitir que, numa fase inicial, foi um choque. A decisão de vir para a Arábia Saudita teve que ver com a necessidade de sentir um desafio diferente. Não tem sido fácil, a maneira de trabalhar na Arábia Saudita está muito longe da organização que os clubes europeus têm. Financeiramente é um país super estável, os clubes estão a investir, mas em termos de organização ainda têm de subir uns degraus para conseguirem chegar ao patamar que pretendem. Mas está a ser uma experiência positiva, tenho encontrado um clube que me tem tentado ajudar e fazer aproximar de todos os detalhes que eu vou pedido no dia a dia e que sinto que são necessários para a evolução.

Há a ideia de que a Arábia Saudita é um ‘El Dorado’, devido à vertente financeira, mas, desportivamente, e ainda para mais num contexto de segunda liga, será o cenário ideal para o crescimento de um treinador?

No futebol, ganhamos ou perdemos, mas há uma coisa que acontece sempre: aprendemos. E estas dificuldades que vivemos aqui diariamente acredito que nos vão enriquecer ainda mais no futuro. Numa primeira fase, o clube não tinha tradutor, por exemplo. Além disso, talvez 80 ou 90 por cento das pessoas na Arábia não falam inglês. Portanto, a comunicação entre mim e os responsáveis do clube e também com os próprios jogadores acabou por ser muitas vezes difícil. Tive a ajuda de um jogador saudita que fala bem inglês e que me foi ajudando na comunicação. Isso atrasa o nosso trabalho, naturalmente, porque aquilo que podíamos fazer num dia demora sempre mais tempo. Mas também é uma aprendizagem para nós e temos de enriquecer com tudo o que vivemos na vida. Foi um risco ter vindo para cá, mas também não tenho problema nenhum em assumir que publicamente que, além de necessitar de um novo desafio, também foi devido ao fator financeiro. Porque aquilo que os clubes da Arábia Saudita podem pagar aos treinadores estrangeiros não está sequer perto do que os clubes na Europa conseguem fazer.

É a sua primeira experiência no estrangeiro. Que ilações tira até ao momento?

Estamos a tentar a melhor adaptação possível. Temos de simplificar os exercícios ao máximo porque se algo se perde na explicação o exercício não vai fluir da maneira que pretendemos. A mensagem tem de passar de forma direta. Mas o que sentimos dos jogadores é uma abertura muito grande para aprenderem.

O impacto dos treinadores portugueses na Arábia Saudita abre a mente aos jogadores?

Exatamente. O que nós temos sentido nos treinos é mesmo isso. Tudo o que pedimos aos jogadores, eles fazem sem sequer olharem para o lado. E isso denota que as pessoas confiam no nosso trabalho, algo que é fruto dos treinadores mais emblemáticos que têm passado pela Arábia, como o Jorge Jesus, o Vítor Pereira, o Luís Castro, por exemplo.

Tem família consigo ou essa é mais uma barreira para contornar?

Tenho apenas comigo o meu staff técnico. É um país difícil para trazer alguém. A maneira como eles vivem é muito diferente de Portugal, têm muitas barreiras e muitos limites. Basicamente, isto é só trabalho-casa e casa-trabalho, não fazemos mais nada. Hoje em dia, e ao contrário do que aconteceu no passado, já é muito difícil um treinador estrangeiro entrar na Arábia, já há uma escolha. Mas isso acaba por deixar-me feliz, porque é sinal que as pessoas no estrangeiro estão atentas ao que nós fazemos em Portugal. Claro que as saudades de casa apertam. Se estar em Portugal a 500 quilómetros de casa já é difícil, estar no estrangeiro torna-se ainda mais complicado. Costumo dizer às minhas filhas que o pai está a lutar pelo futuro delas e é fundamental saber todos os dias que estou a orgulhá-las.

Que emoções sentiu nos primeiros jogos? A subida de divisão é possível?

Fomos a equipa que mais tarde começou a trabalhar, só tivemos duas semanas de preparação e com 10 jogadores. Fizemos o primeiro jogo do campeonato com 13 jogadores! Mas estamos muito à frente do expectável. Aquilo que as pessoas do clube me iam dizendo é para eu não me preocupar com as primeiras seis jornadas porque o trabalho começou muito tarde e esses seis jogos iriam ser muito complicados. Por isso, posso garantir que um empate, uma vitória e uma derrota nos primeiros três jogos foi muito positivo perante todas as dificuldades que tivemos. Podemos ter cinco estrangeiros, que são jogadores para jogarem e para fazerem a diferença, mas nestes três jogos, por exemplo, jogámos apenas com dois, sendo que um deles, o Fati, que foi meu jogador em Mafra, vem de 10 meses de lesão prolongada, e está a readquirir o ritmo de jogo. Ou seja, basicamente jogámos nestas primeiras jornadas com um estrangeiro e meio [risos]. Subir de divisão não faz parte das ideias deste clube. O orçamento que temos não permite competir com outros orçamentos. Mas se financeiramente não vamos conseguir lutar contra outras equipas, taticamente vamos conseguir porque temos trabalhado muito.

Um trabalho que pode permitir-lhe dar o salto para outro clube árabe…

Exatamente. Sei que se fizer um bom trabalho aqui, se mostrar aquilo que normalmente as minhas equipas têm, enquanto processo e ideia de jogo, tenho a certeza de que vou conseguir abrir portas. Este é um povo que gosta de bom futebol, que as suas equipas joguem bem e um futebol ofensivo, e acho que tenho conseguido oferecer isso.

Há muitos treinadores portugueses na segunda liga árabe. A competitividade é grande?

Desengane-se quem pense que a segunda liga da Arábia Saudita está muito atrás da segunda liga portuguesa. A qualidade existe e eles têm trabalhado muito e têm formado academias onde estão a trabalhar treinadores portugueses. Eu tenho um grupo extremamente jovem, mas que era capaz de lutar pelos cinco ou seis primeiros lugares na segunda liga portuguesa. Os jogadores árabes têm de melhorar são os seus índices táticos, onde eu os tento ajudar, mas físicos não. Trabalham como leões, se tiverem de correr três horas seguidas, correm sem dizerem nada [risos].

Costuma estar com os treinadores portugueses que trabalham na Arábia?

Sinceramente, só falei com os que já defrontei. Sou amigo do Mário [Silva], mas ainda nem sequer conseguimos falar, existem tantos problemas para revolver, a cabeça anda sempre a mil e ainda não conseguimos ter contacto uns com os outros. Certamente que o vamos fazer, porque estamos tão longe de Portugal e claro que nos vamos ajudar uns aos outros.