Entrevista A BOLA «Puseram-me uma pistola à frente para jogarmos à roleta russa»

Na 1.ª parte desta entrevista, Guilherme Farinha, treinador português com quase 40 anos de experiência, fala das aventuras que teve na América, onde foi campeão, foi convidado a ser selecionador no Mundial 2002, perdeu títulos devido a corrupção e ainda temeu pela vida

— Começando por um dos países onde talvez teve mais impacto, que é a Costa Rica, onde foi bicampeão, ajudou a estabelecer um convénio da Academia do Sporting em 2017 e queria perguntar se foi o país onde deixou uma marca mais indelével ao longo da sua longa carreira?

— Em primeiro lugar, muito obrigado pelo convite. Foi a Costa Rica que me deu, quiçá, os maiores e mais significativos triunfos como treinador. Agora, eu sou grato, não me posso esquecer que antes de chegar à Costa Rica, estive no Paraguai.

— No Cerro Corá.

— Exato. Não me posso esquecer. Se me perguntar qual foi o meu melhor trabalho, se no Alajuelense, onde fui bicampeão nacional, ou se foi no Cerro Corá onde fui vice-campeão nacional por duas vezes, o meu trabalho no Cerro Corá foi melhor e de mais qualidade. Por várias razões: era um clube de bairro, com 200 sócios, era um campo pequeno, o meu presidente e querido amigo, Carlos Perez Garay, teve confiança total em mim: “O senhor é que é o treinador, o senhor é que sabe.” Ai, se todos os presidentes falassem assim… E quando cheguei o ele disse-me que já tínhamos descido de divisão. Porque o Sporting já me tinha dito que ia para o Cerro Corá, um clube que já desceu à segunda.  

«Fui buscar o Roque Santa Cruz para o Cerro Corá aos 16 anos»

— E chega lá a meio da época.

— Exatamente a meio, porque na América do Sul e Central há os torneios Apertura e Clausura. Eles tinham terminado o Apertura no último lugar com cinco pontos e eu pegava no Clausura. Cheguei lá em 1997 e tive sorte porque tive um mês para preparar a equipa. Deu-me tempo de deitar tudo abaixo e de construí-lo novamente e limpei alguns jogadores altos, gordos, indisciplinados e comecei a ir buscar miúdos, o Roque Santa Cruz foi um deles, com 16 anos, e vários outros. O presidente pediu-me, como já tínhamos descido, dois anos para reconstruir a equipa e tomar conta do futebol de formação do Cerro Corá e depois mais dois anos para estabilizar a equipa na 1.ª divisão.

Roque Santa Cruz, aqui levantando a Liga dos Campeões de 2001 com o BAyern, começou a carreira no Cerro Corá (IMAGO)

A minha equipa tinha uma média de 19 anos de idade e no primeiro jogo perco 0-4 com o Guaraní, e diziam as letras gordas: “Nem o português salva o Cerro Corá, já rebaixou.” Porque se empatássemos mais um jogo baixávamos, tínhamos de ganhar os jogos todos.

— Já quase não havia esperança.

— Ganhei 14 jogos seguidos, ganhei todos os jogos do play-off, ganhei a meia-final e só perdi a final com o Olimpia, do treinador Luis Cubilla. E fui vice-campeão. E perdi porquê? Todos os jornais diziam que a final era a experiência do Cubilla contra a Juventus e a irreverência do Farinha. Era 50-50. Mas na final, o capitão do Olimpia era o Gabiel González e quem arbitrou o jogo foi o irmão dele, Epifanio González, árbitro de Mundial. É claro… [risos] e eles ganharam 3-0, marcaram dois golos no 1.º tempo, nós reagimos muito bem no 2.º e o Epifanio, para acabar com a coisa, num contra-ataque do Olimpia não viu um fora de jogo, eles fizeram golo e ganharam-nos 3-0.

«Fui bicampeão na Costa Rica, vice-campeão da Liga dos Campeões da CONCACAF, cheguei 24.º lugar do ranking mundial da FIFA. Em Portugal só o FC Porto estava à minha frente em 16.º.»

— E depois é vice-campeão no ano a seguir também.

— E perco para o Cerro Porteño. Então eu pergunto, comparado com uma liga em que é um grande clube, um dos maiores da Costa Rica, e indo agora à tua pergunta, a Costa Rica tem três grandes clubes, a Liga Deportiva Alajuelense, o Saprissa e o Herediano. E o Alajuelense tem um milhão e meio de aficionados, o Cerro Corá tinha 200. E a Costa Rica é um país com cinco milhões de habitantes. Tens de ganhar sempre. Então se eu vou para um grande clube, com todas as condições que eu peço e eu sou campeão; sim tenho mérito, os meus jogadores e todo o staff tiveram mérito, mas estava num clube grande. Então eu ponho os pratos na balança e penso, foi melhor o meu trabalho no Cerro Corá ou na Liga Alajuelense? Na Liga foi um excelente trabalho, bicampeão nacional, bicampeão da UNCAF [União Centro-Americana de Futebol], vice-campeão da Liga dos Campeões da CONCACAF em Las Vegas, 24.º lugar do ranking mundial da FIFA. Em Portugal só o FC Porto estava à frente em 16.º, o Benfica e o Sporting estavam atrás. Hoje passo por qualquer parte do país, vou a um restaurante ou um shopping e já não sai, é fotos, autógrafos… as pessoas gostavam de mim como pessoa, que para mim é o mais importante, mas também como treinador.

Mesmo assim, no Paraguai também gostavam muito de mim, ainda hoje me falam, os meus ex-jogadores. Então não posso ser ingrato com o Paraguai, mesmo tendo sido bicampeão na Costa Rica.

— Ganha esse bicampeonato na Costa Rica em 2000/01 e depois esteve perto de ser selecionador do Paraguai, que iria ao Mundial 2002.

— Antes de ir para a Costa Rica, saio do Paraguai por questões políticas e eu não tenho nada a ver com isso. O meu presidente, que tinha ido ao funeral da minha mãe, que morreu quando eu estava no Paraguai. Eu não fui ao funeral da minha mãe, tinha jogo no domingo, ela morreu no sábado e se eu perdesse descia. Ia jogar ao San Lorenzo, se eu perdesse descia. E o líder não estava? Não podia abandonar a minha equipa, a minha mãe que me perdoe, quando for para o céu abraço-me a ela.

Mas o meu presidente disse para ir para a Costa Rica e ele disse-me que ia ser campeão nacional. Então quando sou bicampeão, não vou a Portugal, vou ao Paraguai por causa da tal gratidão, que hoje já não existe, e fui ter com o meu presidente do Cerro Corá. Levava a minha medalha de campeão nacional e pu-la ao pescoço do presidente. Fui para o hotel e todos souberam que eu estava no Paraguai e convidaram-me para ir ao Tiro Direto, um programa muito importante lá. Fui e disseram-me: “O Sr. Oscar Harrison, presidente da Federação Paraguaia de Futebol, tem três candidatos a selecionador para o Mundial 2002 e você está em primeiro lugar.” Como? [risos]. Era eu, Francisco Maturana e Carlos Bianchi. E eu disse “Não, estão enganados. Com todo o respeito, desculpem, mas eu não tenho empresário, ando sozinho no futebol e sem empresário não acredito. Agradeço ao presidente, a todos os que me apoiam, mas não tenho força para chegar…” E é importante ter um empresário por trás, o Maturana e o Bianchi tinham uma equipa atrás deles. Mas o engraçado é que acabou por ser o Cesare Maldini o selecionador, que fez o pior Mundial para o Paraguai e no final, em vez de regressar para o Paraguai com a seleção, foi diretamente para Itália porque tinha a cabeça a prémio.

— Foi convidado para ser selecionador da Costa Rica?

— Fui duas vezes falado para selecionador da Costa Rica. A primeira vez nem foi lá, tinha ido às Honduras, a São Pedro do Sul, jogar com uma equipa local, o Real España, e pediram-me para ir à televisão de tarde, antes do jogo. O meu presidente disse que podia ir e no programa disseram-me que estava muito bem no Alajuelense, mas que o meu nome estava na discussão para selecionador da Costa Rica. Eu disse que estava feliz no Alajuelense. Noutra vez, falaram-me da possibilidade de poder ser selecionador… Mas no Mundial 2002, havia 11 jogadores da minha equipa na seleção da Costa Rica, oito eram titulares. E eu sempre joguei no 3x5x2, não é o meu sistema tático favorito, mas naquele clube era o que melhor encaixava com a qualidade dos jogadores. E a seleção jogou da mesma maneira. O selecionador era o Alexandre Guimarães, que agora está no Alajuelense. E diziam-me para eu ir com ele porque 11 jogadores eram da minha equipa e vão jogar no 3x5x2. E o Alexandre Guimarães fez o que tinha de fazer, não iam dois galos para o mesmo poleiro, e levou o meu assistente.

«Dois jogadores meus foram comprados pelo adversário, trinta mil dólares para cada um… a FIFA irradiou-os.»

— Falando dos cinco anos que passou no Foolad FC, no Irão, comparando com a América Latina, pode-se dizer que é um mundo à parte?

— Eu gostei de trabalhar… tirando a Guatemala, onde sofri muito, mas não foi pelo clube…

— Sentiu perigo de vida na Guatemala, quando treinou o Municipal?

— Isso sim, ah sim! Vou contar só uma história, das muitas que tenho para contar, vou contar uma com um rapaz que era o Pirolo, o dono da rádio dos rojos, porque o Municipal são os rojos. Mas já lá vamos, na Guatemala, onde fui muito bem recebido pelos diretores e jogadores. Fizemos um excelente trabalho, fui vice-campeão porque no final, no desempate por penáltis, ao oitavo penálti o meu lateral direito mandou a bola ao poste. Mas posso-te dizer que nessa noite, o meu presidente chama-me a dizer que o árbitro tinha sido mudado. Eu perguntei porquê. O meu presidente disse “não sabemos bem o que se passou, é outro árbitro, mas vamos ganhar.” Porque ganhámos o torneio regular à vontade e éramos a melhor equipa. Entretanto viemos a saber que dois jogadores meus foram comprados pelo Comunicaciones, trinta mil dólares cada um, foi muito feio e a FIFA irradiou-os. Estávamos a ganhar 2-1, tivemos um penálti e quem marcava era um desses jogadores comprados, a relva estava impecável, não havia chuva e ele escorregou, coitado… Depois eles fazem o 2-2 e vamos a prolongamento e a penáltis.

— E quando correu perigo de vida?

— Eu, o meu assistente Luís Chaves, que foi meu capitão no Casa Pia, o Pirolo, dono da rádio, e o capitão de equipa Romerito, internacional pela Guatemala. Numa garagem quase sem luz, fomos convidados para falarmos para que o Pirolo tivesse mais atenção e não insultasse tanto os jogadores, porque ele até era do Municipal. Estávamos os quatro sentados à volta de uma mesa e ele pega numa pistola e mete-a em cima da mesa. Eu disse: “Isto é a brincar ou a sério?”. Ele disse-me para pegar na pistola e vi que era a sério. E ele diz assim: “Gostava de fazer um jogo convosco. Ou tu cumpres com as ordens que eu dou e jogam os jogadores que eu quero, ou temos de fazer um jogo muito engraçado, a roleta russa! Pomos só uma bala na pistola, rodamo-la e para quem o cano estiver virado, tem de disparar contra a sua cabeça. Até posso ser eu! É muito giro!” E eu disse-lhe: “Estive em África quando era pequeno e perdi o medo todo, eu comia essas pistolas ao pequeno-almoço e obrava à noite.” Estava com medo, mas não o pude mostrar. Depois peguei na pistola, atirei-a e disse que só íamos falar de futebol. Portanto isso aconteceu-me.