ENTREVISTA A BOLA Pepa com uma carreira de treinador feita a pulso e sempre a ultrapassar obstáculos
Começou... do nada, mas nunca desistiu. Resiliente e ambicioso, lutou sempre pelos seus sonhos. E o início teve como combustível... «a sola das sapatilhas». A qualidade do seu trabalho encarregou-se de o levar a patamares superior e com resultados alcançados em todos os clubes por onde tem passado. Guimarães e o Vitória? «Um mundo à parte!»
Dos relvados para os bancos. Sacavenense, Odivelas, Taboeira, Benfica, todos na formação, assim começou uma carreira antes de chegar ao mais alto nível. Fale-nos destes anos.
Podia escolher um episódio em cada um dos clubes, mas talvez não tenhamos tempo nesta entrevista. Começando pelo Sacavenense. Como não tinha dinheiro para me deslocar, fui a pé, porque só gastava sola das sapatilhas, ao estádio, perto da minha casa, e bati à porta do departamento de futebol. Perguntei se havia alguma vaga. Encarei de frente com o presidente atual, que era o chefe do departamento de futebol, e tentei a minha sorte. Só havia um escalão sem competição, com meninos e meninas de 7 anos. E foi assim que comecei. Depois, já depois de estar nos juvenis, acabei por sair por ter algum jogo de cintura, na sequência de um episódio com o presidente, com o qual eu não concordei. Ele queria marcar um jogo-treino contra os juniores numa segunda-feira seguinte a um torneio de fim de semana e eu talvez não tenha tido a tranquilidade necessária para lhe explicar a situação. Exaltei-me um bocado e ele, com a faca e o queijo na mão, mandou-me porta fora. E eu saí com uma lágrima. Porque agarro-me muito aos grupos e aos miúdos. Foi uma lição para mim enquanto treinador, foi a primeira vez que saí de um clube. Há alguns sapos que temos de engolir. Desde que não sejam maiores que a boca, porque a minha personalidade também não permite isso. Depois fui para Taboeira, em Aveiro, onde tomei uma grande decisão da minha vida, optando pelo futebol em detrimento de trabalhar numa empresa em Cacia. E abdiquei de ter um emprego mais estável para ficar no Taboeira.
Como é que financeiramente se gere uma casa e uma família durante esse período?
É uma grande questão e raramente me perguntaram isso. Quando saio do Olhanense, o meu último clube enquanto jogador, e após uma lesão gravíssima no joelho, entrou um processo no Tribunal de Trabalho que me dá, hoje, uma pensão vitalícia. Mas esse processo demorou dois anos e tal. Ou seja, na altura, eu ainda não estava a receber. Apesar de ser pouco, naquela altura iria fazer toda a diferença. Dei aulas de atividades extracurriculares, fui a muitas entrevistas de imobiliárias… Eu não tenho medo de trabalhar. Mas como é que eu podia dedicar-me ao futebol, como queria, trabalhando durante 8 ou 10 horas num sítio onde nem caderno podia ter para fazer exercícios ou sem poder receber um telefonema do meu delegado de equipa a dizer que algum jogador não podia ir ao treino desse dia? Muitas vezes é esta a realidade dos treinadores da formação e esses, para mim, são top! Eu dediquei-me a 100 por cento ao futebol, talvez tenha tido essa ousadia. A sorte pode bater-nos à porta, mas se não estivermos preparados, a sorte vai embora.
Resiliência é a palavra que melhor o define?
Sim. Resiliente e com muito prazer no que fazia que, hoje, felizmente, continuo a fazer. Cheguei a dar palestras sobre o momento da lesão, das expectativas. Fui a universidades, fui a clubes, e depois perguntavam-me qual era o ‘cachê’. E eu dizia: ‘cachê’? O que é isso? Eu não falo francês… Não queria nada disso. Só queria que pagassem o gasóleo para eu não gastar do meu, que já era pouco. Tinha prazer em passar a palavra. E também tenho de falar da família. A minha, que é um círculo pequeno, muito fechado, sempre esteve inundada de amor verdadeiro. E eu não preciso de muito para ser feliz.
Depois começa a caminhada sénior na Sanjoanense.
Foi uma altura fantástica. Eu tinha sido adjunto do Filipe Moreira, no Tondela, e tive na Sanjoanense a primeira experiência como treinador principal de uma equipa sénior. Passado uma semana disse logo que gostava daquilo. Adorei treinar miúdos, passei pelos escalões de formação todos, o que me deu uma grande experiência, mas chegar aos seniores é fantástico. Antes disso, a passagem pela formação no Benfica tinha sido altamente marcante, com treinadores de excelência com quem tanto aprendi e estruturas incríveis. Eu fazia um pouco de tudo e isso deu-me muita bagagem. Quando vou, depois disso, para a Sanjoanense, chamaram-me maluco por sair do Benfica e ir para a distrital de Aveiro. Mas eu não estava obcecado com nada. Tinha objetivos, mas queria apenas ter o prazer de treinar.
Daí segue para Feirense, Moreirense, Tondela, Paços de Ferreira e Vitória de Guimarães. Não há assim tantos treinadores portugueses da atualidade com este trajeto ascendente e com resultados obtidos…
Tem sido uma história muito bonita. Talvez não tenha percebido uma ou outra situação, mas as coisas são o que são. Tal como, por exemplo, o que aconteceu no Feirense, quando saio a oito jornadas do fim quando estávamos em segundo lugar. Custou-me muito não estar no campo no momento da subida. Mas festejei em casa, lavado em lágrimas. Até abri um espumante para festejar.
No Tondela é onde está mais tempo, no caso três épocas. O que é que guarda do clube?
Muita coisa. Muita coisa. Acho que só depois das coisas acontecerem é que percebi o quão difícil foi. Olho para o Feirense e vejo o quão difícil foi subir de divisão. Apesar de não me terem permitido estar lá, entre aspas. Mas se eu vir o presidente, dou-lhe um grande abraço. E posso dizer uma coisa? O presidente Rodrigo Nunes despediu-me e eu estou-lhe agradecido. Porque há duas formas de ver as coisas: com rancor, mágoa e quase que vingança, ou com gratidão. E eu tenho mesmo de estar grato. Porque se ele não aposta em mim, eu não ia para o Feirense nem para as ligas profissionais. Sou campeão na Sanjoanense, subi de divisão, ganhei troféus e pensei que ia dar um salto. Nem que fosse pequeno. E não apareceu nada. Ia ao telefone 50 vezes por dia. E pensava que ia voltar para o distrital. Mas, de repente, toca o telefone e era o Rodrigo Nunes do outro lado. Depois de ir a uma entrevista, acabei por receber um telefonema para ir para lá. Aí está a gratidão. Tondela: muito difícil, mas memórias incríveis. O clube, as pessoas, o presidente Gilberto Coimbra… À imagem do que acontece com outros clubes, especialmente do interior, são instituições pequenas, com todo o respeito, mas muito grandes. Como é que se convence um Ricardo Costa ou um Tomané a ir para Tondela? Mas aconteceu e tínhamos uma equipa muito interessante. Foram três anos muito bons.
Paços de Ferreira e Vitória de Guimarães, depois, com realidades distintas. Especialmente o Vitória, com tudo o que se conhece da paixão dos adeptos.
Tinha estado no Paços como jogador, numa época em que tive um tumor no pé. O treinador era o José Mota, fomos campeões da Liga 2 e subimos de divisão. Eu tive o ano todo sem jogar, os meus melhores amigos foram os elementos do departamento médico, onde eu estive quase sempre. No último jogo em casa, contra o Feirense, o José Mota dá-me a oportunidade de jogar meia dúzia de minutos para ser campeão. Meio a mancar, e tal, mas não interessa. Entrei, joguei, fui campeão e tenho a faixa. O resto é conversa. Gostei muito das pessoas e da cidade. Depois, acabo por voltar enquanto treinador. O clube estava em último lugar, mas eu fui sem medo.
Fez trabalhos notáveis durante essa caminhada.
Sim. Mas olhando para trás também meto o Tondela como um trabalho incrível. Porque às vezes é muito injusto isto. Em 18 equipas só uma é que pode ser campeã. E o Tondela nunca vai ser campeão. O Vitória vai ser campeão da Liga? Talvez já não seja 99,99%, mas será 90%. Esta é a realidade. Catalogar um treinador por ter mais derrotas do que vitórias… Isso é normal. Então vamos lá ver uma coisa, se me derem um Ferrari ou um carro qualquer, como é que esse carro qualquer vai ganhar a um Ferrari? Nem entra nos pontos! A Fórmula 1 é um belo exemplo. Um condutor pode ser muito bom, mas se não tiver carro para ganhar… No Tondela senti, mais tarde, que o trabalho foi fantástico. E no Paços de Ferreira foi brutal. Conseguimos a manutenção, a Direção presidida por Paulo Menezes foi brutal e em janeiro tivemos reforços cirúrgicos que assentaram que nem uma luva. No ano a seguir… rebentámos. Ficámos em 5.º lugar! A equipa estava a voar, parecia um relógio autêntico. E isso abriu-me as portas para o Vitória.
Que é um mundo à parte…
Sem dúvida. Assinei e depois fui de férias. Lembro-me de ir na viagem para o Algarve e no carro, com as minhas filhas, íamos a ouvir as músicas da claque. Até arrepiava! “Oh Vitória, oh Vitória…” Isso entra logo! É um clube muito peculiar. Uma cidade grande, mas que não é assim tão grande quanto isso, mas a forma como aqueles adeptos vivem o clube, a paixão e o amor que têm pelo Vitória, os amores que passam para as novas gerações… É muito impactante e marcante para qualquer treinador que por lá passe. Eu vesti aquela pele e senti-me mesmo realizado. Foi um ano também brutal. Não ficámos em 5.º lugar por pouco, mas agora já se pode falar nisso: ano de eleições em clube grande, mexe. Eu pensava que não, que não era connosco. Mas mexe. Ainda para mais quando começa a haver ruído da possibilidade de mudança. Isso ultrapassa-nos, claro, mas chega-nos e sente-se. E não é benéfico para um grupo de trabalho. Mas olhando para o meu percurso de treinador, tenho o carimbo de ter alcançado os objetivos. E isso é um motivo de orgulho tremendo.