ENTREVISTA A BOLA Pedro Martins: «O primeiro mês foi um choque tremendo, agora quero ser campeão no Catar»

INTERNACIONAL04.07.202420:09

Português foi eleito melhor treinador do Catar na época passada e renovou contrato por mais duas com o Al Gharafa. Após o terceiro lugar e o apuramento para a Champions da Ásia, o objetivo é ser campeão. A gozar férias na terra natal, Santa Maria da Feira, recebeu A BOLA para falar do que lhe vai na alma e das metas para 2024/2025.

— Para quem nos lê e não conhece bem o Catar, que fascínio é esse pelo país e pelo Al Gharafa, de tal forma que, recentemente, renovou contrato por mais duas temporadas?

— Sou um treinador de projetos. Se reparares, toda a minha carreira de treinador se tem pautado por isso. Estive quatro anos e meio no Marítimo, quatro anos no Olympiakos, dois no Rio Ave, dois no Vitória de Guimarães e agora ano e meio no Al Gharafa, com renovação de dois anos. Tomei a decisão de renovar porque entendo que há condições para crescer, não só no meu clube, mas no futebol do país. O Al Gharafa é um dos clubes mais titulados até ao ano de 2010. Depois passou por um deserto de títulos de 14 anos. Queremos recuperar esse caminho dos títulos. Estamos a caminhar nesse sentido e acredito que vai acontecer. O país também é fantástico e o próprio futebol está a crescer. O Antero Henrique, neste momento, por exemplo, é um dos responsáveis pelo comité que gere o futebol profissional no Catar e, de facto, tem tido um crescimento muito grande. E ainda estamos no início. Não envolve os milhões que há na Arábia Saudita, em que há um fundo que investe fortemente em quatro ou cinco clubes, mas no Catar há um trabalho de base sustentado, de crescimento, e que dentro de pouco tempo, quatro ou cinco anos, poderá estar ao mesmo nível da Arábia Saudita, não tendo o mesmo investimento.

— Muitas vezes se fala desse trabalho que Antero Henrique tem feito no Catar. O país beneficia da experiência que ele tinha quando lá chegou, por tudo aquilo que ganhou no futebol?

— Sim, ele tem um currículo absolutamente extraordinário. É dos melhores profissionais que provavelmente nós tivemos naquela área. Não é por acaso que ele, neste momento, é o responsável e está a desenvolver um trabalho de grande qualidade. Com isso e com a aposta dele. Até pela forma como o projeto está a ser apresentado ele tem conseguido motivar grandes treinadores. Na época passada estiveram lá o Galtier [Al Duhail] e o Leonardo Jardim [Al Rayyan], por exemplo, que são treinadores de grande nível. Decidiram ir para lá porque sabem que quando o Antero está num projeto daí advém qualidade e crescimento. Portanto, é nesse sentido que também está a crescer. O país está a crescer, os clubes estão a crescer e neste momento tem muito bons treinadores, que vão dando um cunho e um profissionalismo completamente diferente, ao nível do que se trabalha na Europa.

— Mas que clube é esse que o apaixonou, no qual ficou em terceiro lugar na temporada passada e que lhe valeu a eleição de melhor treinador do Catar?

— O clube estava ligeiramente adormecido por falta de títulos nos últimos 14 anos e este ano foi diferente. Já surgiam muitos adetos novos, coisa que nós não estávamos à espera. É um clube que tem muita margem para crescer e, portanto, achei que ainda não era o momento para sair, porque nós ainda tínhamos uma base de crescimento bastante acentuado. Fui muito acarinhado, desde o início, pelos cataris, pela estrutura do futebol e pelo meu presidente. E, depois, quando há esta simbiose entre de profissionais, a quererem o melhor para o clube, sabendo que há bases para crescer, para mim é importante e decidi ficar.

— Conseguiram o apuramento para a Liga dos Campeões da Ásia. Lutar por títulos é sempre o objetivo?

— Eu sou um treinador que gosta de ter os objetivos muito bem definidos e, por vezes, altamente exigentes. E em cada um dos clubes por onde passei, felizmente consegui sempre concretizar os objetivos a que me propus. Estou extremamente feliz e um dos fatores que fez com que fosse para o Al Gharafa foi que me dariam condições de lutar por algo. Sabíamos que iríamos passar primeiro por uma fase de conhecimento, depois por uma segunda de crescimento, por forma a que a grande diferença entre os clubes principais fosse desaparecendo. Isso foi conseguido e neste momento estamos a um nível muito próximo deles. Se juntarmos a isso as contratações que estamos a fazer, só temos razões para acreditar que, de facto, estamos em condições de lutar por títulos no Catar.

— Ser campeão é o objetivo para esta nova temporada?

— Claro. Quero ser campeão no Catar. Eu fui para o Catar para deixar a minha imagem como treinador. Quando nós vamos para os clubes vamos para melhorá-los e para melhorar os jogadores. Relativamente ao jogador catari, tive vários jogadores que cresceram muito e tive dois que até foram internacionais. Vê-se o seu crescimento técnico e tático, mas sobretudo mental. Neste momento, tenho uma equipa com muitos jovens, mas com uma mentalidade ganhadora completamente diferente da que existia quando cheguei. Neste momento a exigência é muito maior e eles assimilaram isso.

— Como é que era essa exigência quando lá chegou?

— Para mim no início foi difícil porque era uma cultura diferente. Foi difícil porque o jogador, e a equipa naquela altura, era muito pouco exigente. Havia muito pouca responsabilidade de compromisso, muito poucas regras… Enfim, para mim foi um choque tremendo, foi muito difícil o meu primeiro mês. Depois, as coisas começaram a mudar, mas inclusivamente nessa alteração tivemos muitos momentos de choque com o grupo de trabalho. Não é fácil mudar tantos hábitos em tão pouco tempo, mas tivemos de o fazer porque havia necessidade de obter resultados. No futebol é assim, tens de obter resultados o quanto antes, para que depois as coisas se alterem. Eu posso dar-te um exemplo: se um jogador estivesse doente ligava ao médico e o médico simplesmente libertava-o daquele dia de treino. E nem ia ao clube. Esse foi um fator que eu alterei. Há 10 ou 12 anos os clubes do Catar não tinham todos esta exigência para se desenvolverem e, portanto, houve necessidade de criar a Aspire e a Aspetar, nomeadamente no plano clínico. De facto, estas entidades, em termos governamentais, tomaram conta do que era a responsabilidade dos clubes e este tipo de instituições foi muito importante na altura. Mas, atualmente, criam-nos alguns problemas, porque se nós tivermos um jogador lesionado e ele for para a Aspetar nós durante algum tempo vamos ter o jogador fora, enquanto se ele fosse tratado no clube as coisas seriam muito mais apressadas. Por exemplo, o meu clube tinha alguma dificuldade em ter um ginásio muito próximo do que era o nosso balneário. O trabalho de prevenção não existia, mas agora esse tipo de trabalho já existe.

— Hoje em dia os adeptos do Catar já conseguem vibrar com o futebol?

— Sim. Este ano o crescimento no Catar foi acentuado, eu diria que de 500 ou 600 por cento. Neste momento, temos muito mais adeptos do que tínhamos e já vibram de outra forma. Também tivemos o Mundial e a Asian Cup que ajudaram nesse crescimento, e há clubes que cresceram muito, como foi o caso do Al Gharafa.

— O Catar surge na sua carreira depois de uma passagem marcante pela Grécia, com a conquista de três Ligas gregas e uma Taça da Grécia pelo Olympiakos. Mas que Pedro Martins foi esse que chegou ao Catar depois dessa passagem marcante pela Grécia?

— Completamente diferente, muito melhor preparado do que quando cheguei ao Olympiakos, como é evidente. Estive num ambiente altamente exigente, como é a Grécia, e, de facto, aquilo que foi feito no Olympiakos foi um trabalho de grande mérito, em momentos particularmente difíceis. Recordo-me que o Olympiakos durante muitos anos foi o líder do campeonato e passaram por lá muitos portugueses, que foram campeões. Mas quando cheguei a equipa tinha acabado com 18 pontos de atraso para o primeiro classificado e praticamente 90 ou 95 por cento do plantel saiu naquela altura. Foi construído um plantel de raiz, o investimento não foi tão grande quanto isso, mas nós fizemos um plantel de muita qualidade, mas bastante jovem. No primeiro ano não ganhámos nada, mas a partir daí fomos líderes durante três anos e não demos hipóteses a ninguém.

— Depois do Fernando Santos é o treinador português com mais tempo de passagem pela Grécia. É o campeonato que é exigente ou é o país que é muito mais exigente?

— Ambos. E eu explico porquê. Os adeptos exigem muito, nomeadamente os do Olympiakos. E depois também há algumas contingências que tornam o campeonato competitivo. Há várias equipas que, quando nós jogamos fora, não têm o relvado nas melhores condições, por exemplo. Isso é uma contingência para praticar um futebol com mais qualidade. E há três ou quatro equipas que não proporcionavam isso. Embora, no meu último ano, já tenha melhorado um pouco essa situação que era a grande crítica que nós fazíamos à Liga. Há outra contingência que é o facto dos adeptos do Olympiakos não poderem ir aos jogos nos estádios do PAOK ou do Panathinaikos, porque não existem condições de segurança. Há uma rivalidade ultra que não permite que haja essa segurança para os adeptos.

— Ora isso torna tudo muito intenso, certo?

— Sim, torna. Outra contingência é que eles têm 13 jornais desportivos na Grécia. Nós aqui em Portugal dizemos que temos muitos, imagina eles que têm 13. E, depois, outra particularidade, essa imprensa grega é muito controlada pelos presidentes dos clubes, pois cada um tem dois ou três jornais desportivos e, como é evidente, controlam a massa desportiva.

— Aos 53 anos é um treinador que conseguiu ter sucesso lá fora, mas internamente faltam títulos. O regresso a Portugal está longe neste horizonte de carreira como treinador?

— Eu tive vários títulos, mas compreendo o que queres dizer… As equipas em que eu fui treinador não podiam ganhar títulos porque não tinham as condições que os outros tinham. Eu estou muito bem neste momento, o meu projeto é o Catar, provavelmente mais tarde irei para outro país ou regressarei a Portugal. Sinto-me completamente preparado para qualquer realidade, para qualquer cultura ou para qualquer língua.

— Ser treinador no estrangeiro é diferente de ser treinador em Portugal?

— Sim, sem dúvida. Ser treinador no Catar é diferente do que foi ser treinador no Olympiakos ou no Vitória [de Guimarães]. Cada campeonato tem a sua especificidade. Este tipo de desafios que tenho tido, têm sido desafiantes para mim, não só profissional, mas também pessoalmente. Tem sido um crescimento absolutamente extraordinário e acho que toda a gente deveria passar por isso. Eu vejo um mundo muito mais abrangente. Não vejo um mundo muito fechado numa quintinha. Gosto deste tipo de desafios. Vejo o mercado como um desafio e acho que Portugal começa a ser pequeno. Quando apareceu a oportunidade do Olympiakos achei que era o momento de ir para o estrangeiro e ainda bem que o fiz. Não estou nada arrependido pelas minhas escolhas.

— Durante esses projetos na Grécia e no Catar o nome do Pedro Martins já foi associado várias vezes a diversos clubes brasileiros. Porque é que até hoje nunca quis ir para o Brasil?

— Não se proporcionou e às vezes as coisas são como são. Quando surgiram convites eu estava no Olympiakos, tinha contrato e como tinha um compromisso também não quis sair. Recentemente têm, de facto, aparecido muitos convites, mas eu também tenho um compromisso com o Al Gharafa e achei que não era o momento para sair.

— Pedro Martins treinador é mais realizado do que foi o Pedro Martins jogador?

— Sim, completamente. Eu sinto-me muito mais treinador do que me sentia jogador quando era jogador. Adorei jogar à bola e adorei a minha carreira como jogador, mas não trocava esta carreira de treinador pela de jogador.

«Eu sinto-me muito mais treinador do que me sentia jogador quando era jogador»

— Porquê?

— Porque adoro aquilo que faço. É muito mais abrangente, até pelo facto de nos relacionarmos com tanta coisa. Entendo que um treinador de futebol não é só um treinador de futebol que sabe do plano tático, do plano técnico e do plano mental. Tenho de perceber de tudo. De nutrição, da parte clínica, tenho de gerir com os media, com os jornalistas, com os adeptos, com os responsáveis que tomam decisões… Isto é absolutamente extraordinário. Quando jogamos fazemos o nosso treininho, jogamos, vamos para casa e acabou. Sendo treinador nunca mais temos vida própria porque passamos muito tempo a pensar o jogo, a pensar nesta profissão.

— Quando é que sentiu que iria ser treinador?

— Curiosamente até aos meus 27 ou 28 anos eu dizia que não queria ser treinador. Não queria estar mais ligado ao futebol. Com o passar da idade as nossas condições como atletas começam a não ser as mesmas e nós começamos a pensar o jogo de outra forma. Fui-me alimentando e para aí aos 29 anos tinha a noção de que ser treinador era aquilo que queria fazer. Quando acabei a minha carreira já tinha praticamente os cursos todos concluídos. Eu desde que me lembro não vejo nada a não ser o jogo e é isso que me fascina. Aprendi a gostar de ver o jogo de outra forma e é o que me alimenta.

— Que ambiciona conquistar enquanto treinador?

— Tudo. Ganhar títulos. Que os atletas cresçam e que consiga deixar uma marca nos clubes. É isso que me fascina. Eu gosto disso. Fico muito orgulhoso, por exemplo, que o [José] Sá esteja no Europeu. Ele sabe que está aqui um treinador que gosta dele e que quer o melhor para ele. Sinto-me também responsável pelo crescimento e pelo aparecimento do Sá, pois fomos buscá-lo aos juniores do Benfica, levámo-lo para o Marítimo e lançámo-lo na equipa A. Foi comigo para o Olympiakos... É um orgulho a carreira que ele tem feito. Ajudar na evolução dos jogadores é também um prémio para nós treinadores. Tive vários jogadores de grande dimensão, tipo Rafinha [Olympiakos] e Ederson [Rio Ave]. Eu não ganhei nada no Marítimo, mas deixei uma marca. Eu não ganhei nada no Rio Ave, mas deixei uma marca. Ganhámos outras coisas, em termos de crescimento, de valorização dos jogadores, e em termos de objetivos europeus no Vitória. Mas deixei a minha marca. Isto, para mim, é importante sentir que a porta está sempre aberta. Hoje, é muito gratificante muitos jogadores ligarem-me e mandarem-me mensagens, a agradecer aquilo que foi o trabalho que fizemos com eles.

— Quem é o Pedro Martins, hoje, como melhor treinador do Catar?

— É a mesma pessoa que era antes. Nada mudou em mim, continuo a ter o mesmo tipo de vida, tento adaptar-me e crescer, mediante aquilo que tenho. Tenho sempre a necessidade de crescer e por isso é que estou sempre em mudança, à procura de desafios diferentes que me fascinem.

— 2024/2025 vai ser uma época de sucesso?

— Acredito que sim e que vai ser o ano do Al Ghafara.