ENTREVISTA A BOLA «Para vir o dinheiro, o neto do presidente da Câmara tinha de jogar…»
Técnico português conta toda a história que levou à sua saída do Olimpija e ao litígio com os eslovenos. Treinador analisa ainda os momentos de Sporting, FC Porto e Benfica. E recorda episódios curiosos no V. Guimarães e Santa Clara
João Henriques, 52 anos e natural da belíssima e histórica cidade de Tomar, ainda tentou uma carreira como jogador, mas cedo desistiu, assumindo que seria treinador de futebol. Fez estágio no Sporting em 95 e desde então não mais parou. Assinou na passada sexta-feira contrato com os polacos do Radomiak Radom, pelos quais lutará por sair da zona perigosa da tabela. Antes, passou pela Arábia Saudita e por cá treinou Leixões, Paços de Ferreira, Santa Clara, Vitória de Guimarães, Moreirense e Marítimo, antes de se aventurar na Eslovénia, onde orientou a Olimpija Libuliana. E, em entrevista a A BOLA, conta-nos a história surreal que levou à sua saída…
– Comecemos, então, precisamente pelo último clube em que trabalhou, o Olimpija Libuliana, e por alguns dos episódios que resultaram na decisão de sair…
– Foi uma experiência muito boa, que desportivamente estava a correr muito bem, mas foram meses muito intensos, um acumular de uma experiência que ainda não tinha tido, que era jogar três em três dias por causa das competições europeias. Hoje fala-se muito do tempo das 72 horas, que é curto, nós tivemos muitas vezes menos de 72 horas para jogar, mas isso também nos preparou para estarmos a um nível de campeonatos, como se ouve falar do caso do Brasil, que têm jogos muito consecutivos. Preparou-me para esse nível. E isso foi um upgrade que foi muito importante para mim.
– Mas o que falhou e acabou por resultar na saída em outubro de 2023?
– Concretizámos todos os objetivos que nos foram propostos quando assinámos contrato com o Olimpija. Quando saímos, estavam dois já cumpridos e faltava cumprir um, mas como saímos à 11.ª jornada, não era possível… ser campeão à 11ª jornada, mas estávamos em 2.º lugar. Os outros dois eram entrar, pela primeira vez na história do clube, numa fase de grupos de competições europeias, o que conseguimos na Liga Conferência, e conseguir uma venda histórica, que ultrapassasse o recorde do clube, que era de 800 mil euros. No jogo com o Galatasaray (pré-eliminatória da Champions, que perdemos, passando para play-off de Liga Europa e depois Conferência), um dos nossos jogadores internacional sub-21 pela Eslovénia sobressaiu e foi vendido por 2 milhões a um clube turco.
– O que leva então à saída?
– Depois de jogarmos em Lille (fase de grupos da Conferência), tivemos um almoço-reunião, no qual, basicamente, me puseram à frente, em cima da mesa, um onze para jogar no fim de semana, uma clara tentativa de ingerência. Eu, obviamente, segui as minhas ideias, o jogo era fora e, quando regressámos, fui despedido. E houve outras situações: exigiram que um dos jogadores que estava nos sub-19 teria de jogar para que o subsídio da Câmara de Lubliana chegasse ao clube. E esse jogador era… neto do presidente da Câmara. Não disse que não o faria, porque era um jogador do clube e isso iria acontecer naturalmente, mas não se concretizou, já não foi a tempo e foi mais uma situação que agravou.
– O que pensou nesses momentos?
– Foram episódios que, lá está, das duas uma: ou nós seguimos aquilo pela cabeça dos outros e, mais cedo ou mais tarde, por outras razões, podemos também ser despedidos; ou seguimos as nossas ideias, mantendo a honestidade e a integridade profissional e, sobretudo, sendo justos com aquilo que vemos no treino, no jogo, sabendo que só com os melhores é que nós conseguimos vencer jogos.
Estava a almoçar e puseram-me o onze à frente. Vi que era o fim…
– Não ponderou dar um murro na mesa mais cedo?
– Houve mais casos: em agosto, apresentaram-me quatro jogadores dos quais eu conhecia apenas um. Na primeira vez que os vi, tive de perguntar nome, em que posição é que jogava, etc. Era já uma série de questões e comecei a sentir que era eu que estava a ser um entrave para alguns elementos da direção. Até porque eu tive uma excelente relação com o presidente do clube, não foi diretamente nada com ele, muito pelo contrário. Nunca tive problemas pessoais com ninguém, fui bem tratado por toda a gente, mas quando se entrou em questões de negócio de futebol e não a questão desportiva, aí sim já houve diferendos que resultaram no despedimento.
– Para o exterior, porém, a imagem é de uma equipa a conseguir resultados, a respirar saúde. Como reagiram os adeptos?
– Houve elementos da claque do Olimpija que, quando souberam da notícia e me viram na rua, vieram ter comigo e disseram: «Isto está a ser Olimpija, voltou a ser o Olimpija, nós sabemos que isto tem coisas estranhas, porque tu fizeste um excelente trabalho. Obrigado e… pedimos desculpa.» Eles é que pediram desculpa, quem pediu desculpa foram elementos da claque do clube. E, inclusive, havia pessoas da estrutura que estavam tristes com a situação, porque nós conseguimos criar ali uma boa relação, um bom ambiente, ajudámos muito o clube em termos organizativos.
– De que modo ajudou na organização?
– Éramos nós, eu e a minha equipa técnica, que fomos resolvendo onde comer, onde dormir, onde ficar, onde treinar… Eles não tinham esta noção do que era necessário e nós ajudámos muito o clube e agora eles estão mais bem preparados para estas situações todas, porque nós fizemos viagens inacreditáveis, até com distâncias mais curtas, mas em que demorámos 16 horas para chegar, sair do avião, passar pela cama, ir jogar no dia a seguir, coisas assim deste género…
– Recuemos um pouco mais no tempo, bastante mais, até 1995, quando, com 23 anos, fez o estágio de treinador no Sporting.
– Uff, era bem diferente do que é hoje, mesmo! Eu estava no 4.º ano de faculdade e, para a cadeira de metodologia do treino, tínhamos de acompanhar durante duas, três semanas, uma equipa que estivesse em campeonatos nacionais. Eu estava na FMH, aqui em Lisboa, e um dos professores era treinador do Sporting e eu pensei em fazer o estágio com a equipa A. Mas o professor foi despedido e eu tive de mudar um bocadinho o rumo e consegui acompanhar a equipa de sub-19 do Sporting, que acabou por ser campeã nacional. O relatório de estágio que entreguei na faculdade, também entreguei ao treinador dos sub-19, que era o mister Carlos Pereira. Ele gostou bastante e pediu-me para continuar a fazer aquele tipo de trabalho, que era uma ajuda para eles.
– E aceitou?
– Com todo o gosto. Foi a minha primeira experiência, realmente, no treino, que me fez com que eu desistisse totalmente de jogar e iniciar logo a seguir a minha carreira de treinador. O Sporting treinava ao lado do antigo José de Alvalade, nos campos anexos. Tinha um ginásio muito rudimentar, por baixo das bancadas. Era completamente diferente do que são hoje as condições de altíssimo nível na sua academia
– Com que jogadores se cruzou nesse tempo?
– O Marco Caneira era um dos jogadores dessa equipa, entre outros, e que estavam lá, muito bons jogadores. O Simão (Sabrosa) estava a aparecer, o Cristiano estava nas camadas mais jovens.