Olegário Benquerença recorda a morte de Fehér: «Foi terrível, ninguém conseguiu dormir»
Olegário Benquerença, antigo árbitro internacional português (ASF)

Olegário Benquerença recorda a morte de Fehér: «Foi terrível, ninguém conseguiu dormir»

NACIONAL25.01.202408:30

Esta quinta-feira completam-se 20 anos da morte de Fehér, ponta de lança húngaro do Benfica que caiu inanimado em campo num jogo em casa do V. Guimarães; Olegário Benquerença era o árbitro e A BOLA falou com ele

Foi a 25 de janeiro da época de 2003/2004 que Miki Fehér caiu no relvado de um V. Guimarães - Benfica do campeonato. Morreria nesse mesmo dia, já no hospital.

O árbitro do jogo era Olegário Benquerença, que, naturalmente, nunca mais esqueceu o que se passou naquela noite e no dia seguinte.

- Pode levar-nos de volta ao momento em que o incidente ocorreu? Do que é que se lembra?
- Eu lembro-me daquilo que foi factual, portanto, o jogo estava a terminar, o Benfica não me recordo se estava a ganhar ou empatado, penso que ganhava por 2-1 mas não tenho mesmo a certeza, e o Fehér tinha entrado poucos minutos antes, e, numa situação normal de jogo, tentou retardar o começo e impediu o Vitória de recomeçar o jogo e eu, obviamente, tive de lhe exibir o cartão amarelo,  que ele aceitou pacificamente, consciente que tinha cometido essa infração, e esboçou um sorriso como que a pedir perdão pela infração que tinha cometido, e imediatamente, deve ter sentido algum desconforto interno, um pronúncio do que ia acontecer, baixou-se e caiu como todos sabemos. 

- Como é que a sua equipa se uniu para se apoiar mutuamente durante e após o incidente?
- Durante não foi possível demitirmo-nos das nossas responsabilidades, independentemente do choque e da situação, cada um de nós procurou manter a concentração naquilo que são as incidências do próprio jogo, manter tudo sob controlo. Eu e o meu colega que estava mais próximo é que acabámos por viver mais de perto o incidente, os outros dois colegas estavam a 50 metros, foram-se apercebendo de algo anormal a acontecer, mas sem consciência, porque não é frequente que jogadores caiam no solo e tenham de ser assistidos. Até à entrada da ambulância, teoricamente não passava de uma situação normal no futebol. Só a partir desse momento é que tomámos consciência de que algo muito grave se estava a passar. Os jogadores pediram-me para não prosseguir o jogo, mas os regulamentos não me davam esse poder, de suspender a partida por aquela razão, e fizemos todos um grande esforço para reatar o jogo, e mesmo assim terminei ainda antes do tempo adicional que tinha dado, não havia condições, ninguém estava em condições de prosseguir. Depois no balneário é que tomámos mais consciência da situação e acabámos por ficar como todas as outras pessoas ali, à espera de notícias e que não fossem as que infelizmente se vieram a confirmar. Depois de sairmos do estádio fomos para o hotel dormir como previsto, mas ninguém conseguiu dormir e o dia seguinte foi um dia terrível para todos nós, com toda a descarga emocional do que vivemos.

- Como é que você e os seus colegas de equipa lidaram com as consequências do incidente e que sistemas de apoio existiam para si?
- Não tivemos formalmente nenhum acompanhamento em termos psicológicos nem nada disso. Ou seja, quando falo do ponto de vista formal, refiro-me ao recurso a um processo de recuperação, mas naquele dia e no dia seguinte, a Liga, liderada pelo Major Valentim Loureiro, que nos chamou e pediu para ficarmos no Porto, foram inexcedíveis, estiveram connosco, o próprio presidente da liga almoçou connosco, esteve sempre a acompanhar-nos, e ao fim e ao cabo a partilhar connosco a dor do momento. Depois, tivemos também um contacto de um psicólogo que na altura trabalhava para a arbitragem da Liga, o professor João Nuno Pacheco que, de forma informal, mas muito assertiva, também teve palavras connosco e nos ajudou a superar aquele momento. Infelizmente isto faz parte, é uma potencial incidência, não era caso único naquele período, 2003/2004 teve algumas situações, mesmo no estrangeiro. Acabámos por tentar normalizar dentro do possível porque, infelizmente, só para o próprio e para a família e colegas de equipa, por razões óbvias, é que terá sido uma perda irreparável. Nós, depois de passado o momento e depois do trauma, limitámo-nos a seguir as nossas vidas, que é assim que tem de ser.

- Houve alguma ação ou gesto específico de alguém que se tenha destacado para si? Que o tenha marcado e lembre até hoje?
- Sim, de um dos melhores seres humanos com quem eu privei na minha longa carreira de futebol e na minha vida no geral, pessoa fantástica que já não esta entre nós, um homem de H grande em todos os momentos, o Neno, guarda-redes que passou pelo Benfica e que na altura estava no Vitória. Não foi propriamente um gesto isolado, foi um acompanhamento, esteve connosco no balneário, a seguir ao jogo e quando aguardámos, esteve sempre connosco, no fundo partilhando também a dor que sentia, mas em comunhão de sofrimento, se é que se pode dizer assim. E no fundo, com mais uma demonstração da sua grandeza de homem, o Neno não foi só um grande jogador e profissional, era um homem ímpar em todo este mundo do futebol.

- Como vê a forma como o pessoal médico lidou com a situação, e acha que houve alguma melhoria na preparação médica desde então? Compreendo que talvez não tenha habilitações para se pronunciar sobre o assunto, mas…
- Eu, como disse e muito bem, não sou a pessoa mais competente para avaliar o desempenho das equipas médicas, mas de uma coisa tenho a certeza, porque pude testemunhar. Desde logo, a solidariedade entre as equipas médicas do Benfica e do Vitória, que se uniram na tentativa de reverter a situação. Depois, todo o profissionalismo, a começar por um detalhe: jogo de Inverno, com chuva, usar o desfibrilador era desaconselhado, porque podia pôr em perigo todos nós que estávamos nas proximidades, mas, com o apanágio de qualquer médico, tiveram cabeça fria para fazer tudo ao seu alcance sem pôr em causa a segurança de todos os que estavam na proximidade. Não tenho palavras, porque de facto vi todo um esforço, trabalho, luta, atrevo-me a dizer, entre aspas, o desespero do pessoal médico, bombeiros e todas as pessoas que estavam por perto e que se tentaram unir para salvar uma vida, infelizmente sem sucesso, mas garantidamente não foi por falta de cuidado. O que aquele incidente terá alterado no futebol e acompanhamento não sei, mas seguramente outras medidas foram implementadas. Não sei se naquela altura os desfibriladores já eram obrigatórios nos estádios, penso que passaram a ser obrigatórios um tempo depois e, claro, com a experiência e acontecimentos destas situações a ocorrer, terá sido estabelecido um novo protocolo e consciencialização para este tipo de riscos. A verdade é que já ocorreram outros [incidentes] e houve sucesso na reversão, terá sido também por experiência adquirida nestes casos que aconteceram antes.

- Como é que, nos meses e anos que se seguiram ao incidente, este afetou a sua abordagem ao jogo e a sua carreira?
- Acima de tudo mudou a minha forma de olhar para a vida, porque de facto o ter presenciado de tão perto uma situação tão trágica e grave como aquela fez-me tomar consciência que nós de facto não somos donos do nosso destino nem conseguimos contornar a lei da vida, e realmente passei a valorizar mais os momentos em que tive oportunidade de ser feliz, porque não sabemos quanto duram e como terminam. Em paralelo, confesso que nas restantes vezes que voltei ao estádio de Guimarães depois desse incidente, nunca mais consegui deixar de ver aquele sítio e recordar todos aqueles momentos, a sucessão de momentos que aconteceram nesse fatídico dia. Do ponto de vista pessoal, houve a valorização ainda mais da vida. Do ponto de vista desportivo, além desse, vamos chamar-lhe trauma, houve um registo de memória daquele local, daquele estádio, também uma maior preocupação com potenciais situações similares em momentos de lesões de jogadores, sendo que eu não tinha a perceção de… imagine uma situação traumática, uma situação que estamos preparados, um jogador que pode ter uma fratura ou não, há sempre antecipação. Num caso destes, de doença e morte súbita, não tinha sequer consciência que podia acontecer, e a partir daí aumentei o meu alerta em situações que pudessem resultar em casos semelhantes. Foi ao fim e ao cabo uma melhor preparação para, dentro do que eram as minhas poucas capacidades, poder antecipar cenários destes e acelerar o processo de assistência aos jogadores.

- Que recordações guarda do jogador, tanto dentro como fora do campo?
- Fora do campo não tenho recordações porque nunca privei com ele. Dentro do campo também não tive muitos contactos com ele, a única coisa que de facto recordo é que era um jovem simpático, alegre, nunca foi um foco de conflito, não era o tipo de jogador que sentíssemos que estava ali para nos complicar a vida. Foi, infelizmente, um desaparecimento demasiado cedo de um atleta que era de facto, no pouco que tive oportunidade de conhecer, uma pessoa afável e muito simpática.

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