Análise O que João Mário e Aursnes (mesmo a lateral) dão e Roger Schmidt não abdica
Os adeptos pedem David Neres, mas o treinador alemão tem resistido à ideia e procurado soluções que já vêm da última temporada
Uma equipa que só ataca dificilmente não sofrerá golos, tal como aquela que apenas defende terá muito mais problemas em conseguir oportunidades para marcar.
Há vários momentos fundamentais no jogo, mas dois são críticos: precisamente aquele que se dá quando se perde a bola (transição defensiva) e o outro quando se a recupera (transição ofensiva). São essas situações quase paradoxais a olho nu, as de defender bem para atacar melhor ou as de atacar melhor para defender bem, que preocupam naturalmente todos os técnicos. E Roger Schmidt não é diferente dos demais.
O Benfica parte como campeão e, apesar da perda de Gonçalo Ramos, Grimaldo, Gilberto e Vlachodimos, não há quem não acredite que o técnico alemão tem mais soluções do que na temporada passada. Basta somar os nomes. É inequívoco. Há hoje muito mais talento, porém talvez a pergunta que se devesse fazer seja: há mais equilíbrio?
O onze-tipo das águias em 2022/23 era qualquer coisa como isto: Vlachodimos; Bah, António Silva, Otamendi e Grimaldo; Florentino (no final Neves) e Enzo Fernández (depois Chiquinho); João Mário, Rafa e Aursnes; Gonçalo Ramos. Se excluirmos o guarda-redes e os centrais, havia três jogadores de rotura (Bah, Rafa e Ramos) e cinco de pausa e ligação (Enzo/Chiquinho, Florentino, Grimaldo, Aursnes e João Mário). Nesta temporada, com o talento também a vertigem aumentou. Jurasek ou Ristic encaixam mais nos esticões do que na associação, tal como Di María e até João Neves. Perdeu-se um pouco o controlo. Se a isso juntarmos falhas na pressão alta pela inclusão de jogadores novos e ainda mais ofensivos os encontros do Benfica ficam muitas mais vezes do que antes partidos.
No meio de tudo isto, há ainda quem considere que David Neres tem de ser titular e aponta para João Mário como eventual sacrificado. Percebe-se obviamente a tentação. Com três extremos rápidos e talentosos, porque não? Schmidt ainda o tentou em Barcelos, todavia terá aprendido a lição. O desequilíbrio terá sempre tendência a aumentar, ainda mais com o desgaste natural de Di María com o passar dos minutos. A ideia poderá ser suficiente diante de adversários mais frágeis, no entanto não dará para estabelecer daí um onze-tipo. A rotação centrar-se-á provavelmente muito mais entre Florentino e João Neves, porque o jovem está a crescer tanto que precisa que lhe arranjem espaço para se expressar.
Schmidt já teve, ao longo da carreira, algumas decisões fora da caixa. Talvez a mais popular tenha sido a de transformar um avançado-centro mediano, como Yu Dabao, curiosamente jogador que passou pelas últimas etapas de formação no Benfica, em central de qualidade, de seleção. Ou até apostas de risco, como quando lançou um miúdo de 18 anos, João Neves, no onze titular no momento mais crítico da temporada. No entanto, se ver um lateral direito no norueguês já era algo que muito poucos tinham vislumbrado, ir aí garimpar um defesa-esquerdo parecia cenário inverosímil até no faroeste. A verdade é que a escolha terá convencido de vez Mihailo Ristic de que, por muito que tentasse, nunca teria as oportunidades que julgava merecer; e posteriormente obrigou o clube da Luz a livrar-se do sérvio e a recorrer ao empréstimo de Juan Bernat.
Fredrik Aursnes não é especialmente rápido ou forte no desarme. Também não se deixa inspirar por elevadas doses de criatividade. Não está dotado de uma técnica que lhe permita manter-se inseparável da bola ou sequer possui habilidade para ultrapassar uma série de adversários em drible. O nórdico é o símbolo do paradigma em que Pep Guardiola – permitam-me que o chame à discussão – mais acredita: um médio é o jogador mais completo em campo, porque sabe defender, atacar, passar e finalizar. Por ele, se possível, estariam sempre em campo 11 centrocampistas.
O que Schmidt procura em Aursnes ao ponto de o colocar até no lado esquerdo da defesa é a inteligência. Alguém que sabe sempre compensar e, mais importante, toma na maior parte das ocasiões a decisão certa no momento com bola. Ou seja, não corre riscos com uma saída sem esperança de sucesso e sabe guardá-la até se dar o equilíbrio. O espanhol do Manchester City tem uma regra fundamental no seu jogo: são precisos 15 passes até a equipa poder ter a liberdade para arriscar um passe de rotura. Hoje, é um pouco menos fundamentalista, mas é essa forma de reter a bola até ao alinhamento de todos os astros que evita o risco de ser muitas vezes apanhado na transição. Isso e uma contrapressão (reação à perda) eficaz, que, no caso dos encarnados, também ainda pode melhorar bastante.
Aursnes é pausa, ainda mais como lateral, porque ajuda os encarnados a manter a bola mais à frente com racionalidade. Tal como João Mário. Depois, sem bola, ambos fazem outros movimentos que os levam perto da baliza e dão dinâmica ao ataque, mas com esta nos pés funcionam como fator de ponderação. Não parece que se trate de não gostar de Ristic e até poderia acontecer com Jurásek apto. Roger Schmidt está a tentar encontrar um novo ponto de equilíbrio para poder ter em campo ao mesmo tempo um ponta de lança diferente e ainda Rafa e El Fideo Di María.
Naturalmente, há um problema. São dois destros sobre a esquerda e a tendência será naturalmente derivarem para dentro. E, no primeiro ensaio, a assimetria pareceu demasiado evidente. A manutenção da largura tem de ser trabalhada no treino e transportada para o campo, porque, mesmo que não se ataque tanto por aí, é sempre necessário esticar a linha defensiva adversária de lateral a lateral para que o espaço apareça no meio ou do outro lado. E, nas últimas partidas, a mesma largura tem já sido preenchida qb pelos dois jogadores e ainda com movimentos de Di María ou do avançado-centro. É a equipa que tem de responder à equação e poderá estar a começar a fazê-lo: Aursnes e João Mário terão mesmo sido dos melhores em campo diante do V. Guimarães.
Um segundo ponto será a maior fragilidade posicional de Aursnes no momento defensivo, o que tem de ser respondido com a compensação por parte da equipa, com a maior presença de um médio por perto, algo recorrente no início da última temporada, fosse por Enzo ou Florentino.
A contratação de Juan Bernat, um lateral com um perfil mais semelhante a Alejandro Grimaldo, deverá reintroduzir a médio prazo a pausa que Roger Schmidt entende que o conjunto precisa. E acrescentar as valências técnicas e de aceleração que o norueguês não consegue garantir. Se correr bem, até poderá ser a contratação mais influente. Há, entretanto, um sinal de alarme por causa de Alexander Bah e não surpreenderá mesmo nada se o ex-Feyenoord surgir nos próximos tempos novamente por aí. O que precipitaria também Bernat no onze.