O País Basco, novo viveiro da campeã da Europa
Maior contingente do século com 9 representantes; Athletic Bilbao e Real Madrid criam jogadores para o modelo espanhol; selecionador nasceu em Haro, a poucos quilómetros da região, e foi atleta dos ‘Leones’
Nove dos 26 jogadores da seleção espanhola campeã da Europa jogam ou jogaram por emblemas do País Basco. O próprio selecionador Luis de la Fuente aí esteve há várias décadas numa fase da sua carreira como lateral-direito. É a maior expressão futebolística da região na Roja pelo menos neste século.
A identidade começa na nomenclatura País e continua num idioma único, que não se relaciona com qualquer outro no mundo. Talvez tenha derivado de uma protolíngua que se falava nas cavernas. Ou não. Não se sabe. O que não é mera teoria é que é absolutamente único, ainda que haja quem veja na velha euskara parecenças com o húngaro. Só é possível, contudo, com muita boa vontade.
Nasce, a identidade, também no fervoroso desejo nacionalista de autodeterminação, apesar dos muitos excessos da ETA, potenciados, mas não desculpáveis, com o tratamento recebido durante a ditadura de Franco – que baniu língua, bandeira e cultura – e depois com uma autonomia que nunca satisfez os locais. Cresce, antes, da dura recuperação após a brutal devastação causada pela Guerra Civil, de Guernica a muitos outros locais. Do profundo orgulho em ser basco, que se transmite aos descendentes, junto com os valores do sacrifício, do esforço e do altruísmo.
A ‘fúria’ contra a posse
Já no futebol, é importada dos primeiros ingleses que desembarcam nas docas de Bilbau, operários e estudantes da classe média, com mais jeito para o passe curto do que os que tinham ficado em casa, e que lançam as sementes de um tiki-taka que sucumbirá à fúria.
Àquela resiliência, voluntariedade e agressividade que reconhecemos da década de 80 sobretudo em Bilbau chamam fúria basca, embora esteja colada à seleção espanhola desde os Jogos Olímpicos de 1920 e se prolongue até à entrada do falecido Luis Aragonés, que abre finalmente as portas à ideia fermentada em La Masia. Todavia, acontece apenas seis anos após Javier Clemente, também ele basco e um dos selecionadores mais irredutíveis na forma mais vertical e tradicional de jogar, terminar a sua passagem pela Roja. A fé na fúria tinha esmorecido: valera o título europeu em 1964, porém depois só se conseguira uma final, perdida para a França, 20 anos depois, entre inúmeros insucessos.
Outra quota parte da responsabilidade pertence a Belauste, José María Belausteguigoitia, que protagonizou na perfeição a encarnação dos valores hispânicos: virilidade, impetuosidade e fúria. Valores exacerbados em momentos de maior idealismo ou espiritualidade no jogo, que todavia permanecem latentes décadas a fio.
Formar muito e bem
A identidade vai ao ponto de o Athletic apenas aceitar bascos no plantel e só recentemente ter aberto um pouco as portas para atletas com ascendência local ou formados na região. Também a Real Sociedad adota o sistema até 1989, quando contrata o avançado irlandês John Aldridge. Mantém, no entanto, total hermetismo a espanhóis de outras zonas até 2002, com a entrada de Sergio Boris. Se nos Leones é fundamental um recrutamento espantoso e a aposta na formação, também os Txuri-Urdin não podem passar ao lado dessa necessidade, embora a um nível menor.
Em Lezana, a cerca de 15 quilómetros de Bilbau, é construído, em 1971, o centro de treinos do Athletic, atualmente com 130 hectares. Aí treina a equipa principal e joga a equipa feminina, bem como os dois conjuntos de reservas de ambos os sexos, o Amorebieta, da segunda divisão, e toda a cantera, dos 11 aos 19 anos. O complexo engloba ainda um pequeno estádio com 3.250 lugares, mais quatro campos de relva natural e três de composto artificial, um minicampo com relva sintética, uma zona de serviços com ginásio, salas de Imprensa e centro médico, além de um dormitório com 18 camas para jovens jogadores. O Bilbao Athletic e o CD Baskonia, com o qual é estabelecido uma parceria em 1997, funcionam como patamares de evolução competitiva para os jovens acabados de sair dos juniores.
Já a Real Sociedad monta o quartel-general em Zubieta, ao lado do hipódromo de San Sebastian. Inaugurado em 1981, é modernizado em 2004 e ocupa 70 hectares. Conta com um pequeno estádio para 2.500 lugares, onde jogam a equipa B e a de reservas, dois relvados para formação, outros tantos com composto artificial, dois pequenos campos com relva natural e um centro de serviços com ginásio. Sabe-se que, em ambos os clubes, além de se ensinar a jogar futebol, os jovens candidatos a profissionais aprendem tudo o que o clube representa para a cidade, para a província e para o território.
Tendências e orientação direta
Entretanto, também Gipuzkoa, a mais pequena província espanhola, cuja capital é San Sebastian, se torna um autêntico viveiro de treinadores. De entre 720 mil habitantes em média saem nomes como Mikel Arteta, Unai Emery, Andoni Iraola, Julen Lopetegui, Imanol Alguacil, Xabi Alonso e Juan Manuel Lillo, este adjunto de Guardiola no Manchester City e um dos maiores ideólogos do juego de posición no país vizinho. The plot thickens.
Com a cultura e valores bascos do sacrifício, esforço e altruísmo, e com uma identidade de posse e passe curto recuperada aos primeiros tempos do football na região e que passou também a ser tendência por todo o lado dado o sucesso do Barcelona e da Roja – e reforçada ainda pelas ideias de Ernesto Valverde e Imanol Alguacil, respetivamente no Athletic (6 anos em três passagens, mais um como adjunto e outro na equipa B) e na Real (4 anos, mais 7 na formação) –, porém com uma ideia moderna de pressão e contrapressão intensa, criam-se inúmeros craques nos dois rivais, que nunca se tornam inimigos e que apenas se desentendem uma ou outra vez, como na transferência de Iñigo Martínez do Anoeta para San Mamés em 2018. Uma animosidade mais virada até para o próprio futebolista do que para o outro emblema.
A entrada na ‘Roja’
Se há 12 anos, em Kiev, a Espanha campeã da Europa estava dividida entre craques do Real Madrid (Casillas, Albiol, Sergio Ramos, Xabi Alonso e Arbeloa) e Barcelona (Piqué, Busquets, Iniesta, Xavi, Pedro, Fabregas, Valdés) e apenas Javi Martínez e Fernando Llorente representavam o País Basco, no caso Bilbau, em 2024 são oito os futebolistas sob contrato com um dos emblemas da região: Robin Le Normand, Mikel Merino, Álex Remiro, Zubimendi e Oyarzabal (Real Sociedad) e Daniel Vivian, Nico Williams e Unai Simón (Athletic). Também Aymeric Laporte passa pela formação dos Leones e o próprio selecionador, Luis de la Fuente, é lateral dos bilbaínos na década de 80.
Apesar das seis Ligas dos Campeões de Dani Carvajal e da qualidade de Rodri, em termos de individualidades a mais recente dominadora continental está bem menos apetrechada do que aquela que fez a festa em Kiev, na Ucrânia. Mas mantém parte a identidade, com um modelo 2.0, graças à verticalidade de Nico Williams e Lamine Yamal.
Desde 2000 inclusive, é o maior número de bascos na equipa nacional. Nos Países Baixos e Bélgica, estão 3 (Aranzabal, Etxeberría e Urzaiz), na Coreia do Sul e Japão, dois anos depois, apenas 1 (Javier de Pedro). Em Portugal, em 2004, figuram 3 (Aranzubia, Xabi Alonso e novamente Etxeberría). Já em 2006, na Alemanha, e 2008, na Áustria e Suíça, não há ninguém. Dois (Javi Martínez e Fernando Llorente) são transversais a 2010, 2012 e 2014. Em 2016, em França, há novamente dois bascos (Mikel San José e Aduriz). Na Rússia, passados dois anos, apenas um (Kepa). O Euro 2020, jogado em 2021 devido à COVID-19, contou novamente com dois (Oyarzabal e Unai Simón). No Catar, estiveram outros tantos (Nico Williams e Unai Simón). Um ano e meio depois são 9!
Além disso, não são meros figurantes. Nico Williams – o primeiro negro a marcar pelos Leones foi o seu irmão Iñaki em 2015, quatro anos depois de Jonás Ramalho, nascido na Biscaia e filho de pai angolano e mãe basca, se tornar o primeiro a atuar pelo clube, em 2011 – foi uma das figuras durante todo o torneio e marcou na final, tal como Oyarzabal, um suplente de luxo. Merino cabeceou para eliminar a poderosa França nas meias e Unai Simón foi competente na baliza e Le Normand no eixo defensivo. Aymeric Laporte, formado no Athletic, comandou todo o setor.
O País Basco é hoje um autêntico viveiro para o futebol espanhol e mundial. Com finalmente a forma certa de jogar, ou seja, a mais apropriada ao modelo que começa a ser transplantado para a Roja desde 2004, e o lucro a ser praticamente todo investido na formação, que tem de gerar futebolistas que possam competir com os melhores estrangeiros que chegam aos grandes clubes, a riqueza de talento aumentou consideravelmente. Só um louco não o aproveitaria, mesmo que não seja proveniente de gigantes como Real Madrid, Atlético ou Barcelona. Ainda mais, sendo Luis de la Fuente um homem da casa, que conhece todos os seus cantos.