«O futsal e o jogador angolano são uma bandeira do país»
Marcos Antunes, selecionador de futsal de Angola

ENTREVISTA A BOLA «O futsal e o jogador angolano são uma bandeira do país»

FUTSAL09.03.202410:00

A BOLA foi até São Martinho de Mouros falar com Marcos Antunes, selecionador de futsal de Angola e fundador do projeto 'Afonsinhos', vencedor do Prémio Quinas de Ouro em 2018

A poucos dias do início do CAN de futsal, A BOLA conversou com Marcos Antunes, selecionador de Angola, no pavilhão dos 'Afonsinhos', projeto galardoado com o Prémio 'Quinas de Ouro', da FPF, em 2018, e fundado pelo treinador na sua terra, S. Martinho de Mouros.

- Como é que surgiu a paixão pelo futsal?

«A paixão pelo futsal vem já desde o tempo da escola, do desporto escolar, quando eu acho que o desporto escolar era mesmo essa sigla que nós fomos crescendo da minha geração. Começamos ainda com o futebol de 5, apanhei um pouco do futebol de salão e a paixão vem daí, de jogar, de ter algum jeito para jogar, e, portanto, tudo nasce na rua, na rua onde eu vivia, e depois na escola temos continuidade com esta paixão desde sempre do futsal.»

- Sempre teve o objetivo de seguir a carreira de treinador?

«Até acaba por ser uma história engraçada. Aos 32 anos, depois de algumas lesões, o presidente de um clube faz-me esse desafio e eu começo até pelo futebol de 11, em 2009, como treinador, e foi algo que logo me apaixonou. Lembro-me que na altura o presidente tinha dito que poderia ter algumas características que iriam ter algum sucesso, e fui-me baseando também um pouco nisso no meu trabalho, e foi aí que começou a paixão pelo treino, pelo processo de treino, e sobretudo também pelos jogadores.»

- Neste momento é o selecionador de Angola, cargo que assumiu em 2022. Como é que surgiu a oportunidade?

«Estive no Mundial da Lituânia em 2021, a convite da Federação, enquanto Team Manager, noutras funções. Depois, no final de setembro, o anterior selecionador acabou por sair e foi-me lançado o convite. Eu ainda andei ali alguns meses a negociar e a falar com a Federação, e depois, como acreditava muito no projeto e acredito muito no país, aceitei o desafio e tem sido uma experiência de uma vida.»

- O que é que encontrou quando assumiu o cargo de selecionador? Já estava familiarizado com o futsal angolano?

«Sim, há sempre agora, nós temos a vantagem de podermos pesquisar, o doutor Google tem a resposta para tudo, e fui fazendo algumas pesquisas, habituando-me também a observar alguns momentos da Lituânia e percebendo também ali algumas situações, tanto entre dirigentes como jogadores, mas também fiz ali uma pesquisa muito grande, e o futsal era algo que eu sentia que tinha muita propensão a crescer em Angola. Então, essa paixão também ficou ali um bocado atrás, e esse objetivo futuro de poder vir a trabalhar nas seleções. Depois, em janeiro de 2022, aceitei, puse as cartas na mesa, a Federação também aceitou aquilo que eram as minhas condições, que não eram nada de extraordinário, mais até na questão de criar um plano estratégico para o desenvolvimento do futsal, e tem sido assim até hoje uma luta.»

Marcos Antunes assumiu o comando técnico de Angola em 2022

- O grande objetivo no CAN que se aproxima será a qualificação para o Mundial?

«Sim, o objetivo passa sempre por aí. Nós já estivemos no Mundial da Lituânia, queremos estar no CAN, nos três primeiros lugares, que nos concedam uma oportunidade de irmos disputar o Mundial, é esse, sem dúvida, o maior objetivo, é para isso que estamos a trabalhar, é para isso que estamos a organizar-nos, e eu acredito muito que com trabalho, com dedicação, com entrega, também dos próprios atletas, nós vamos conseguir esse objetivo.»

- Numa entrevista à Lusa no verão passado referiu que o maior entrave ao sucesso do futsal angolano estava relacionado com a falta de investimento. Desde então houve alguma melhoria nesse aspeto?

«Sim, porque a nível de infraestruturas, nós temos muito boas infraestruturas, temos muito boa matéria-prima, estamos a falar num país de 40 milhões, logo há mais escolha, e quando falo escolha masculina e também feminina, mas nós sabíamos que precisávamos que investissem, o que é que está a acontecer neste momento? Está a acontecer que o desporto está a ter aquela questão de valorização que eu tanto falei nessa entrevista à Lusa, hoje são os patrocinadores que vêm à nossa procura, nós hoje temos um banco que nos quer patrocinar, temos as maiores empresas da Angola atrás de nós, e isso dá-nos uma estabilidade para podermos fazer um percurso ainda melhor, com mais qualidade, e para usarmos o futsal não só para formação, de dirigentes e treinadores e por aí fora, inclusão social também através do futsal, que é muito importante em Angola, e as seleções nacionais, porque temos ali muito talento, que pode ser também uma porta-bandeira do que é o desporto em África.»

- Como é que o futsal tem crescido em Angola? Tem tido um crescimento exponencial no número de praticantes como se tem verificado em Portugal?

«Mais lento, porque estamos a começar a organizar, estamos a começar a tornar internacional a modalidade, e isso faz com que, por exemplo, vou-vos dar um exemplo hoje mesmo, está a começar o primeiro curso de treinadores da CAF em África, e que está a ser em Angola, construído a formando os angolanos. Isso quer dizer que as próprias entidades internacionais vêem em Angola uma grande capacidade de organização e de ensinamentos, de passar conhecimento, e isso diz que o futsal hoje é quase que uma bandeira do país. O futsal e o jogador angolano é quase que uma bandeira do país. Esta questão do CAN de futebol também veio trazer algum alento e alguma alegria ao desporto, e nós queremos aproveitar, nós somos a próxima modalidade a ter já uma prova, que é o CAN, em abril, em Marrocos, e então queremos aproveitar também este embalo, com todas estas questões que já falámos atrás, e podermos dar uma excelente resposta e dignificar ao máximo a bandeira e o país, que é isso que nós queremos fazer.»

- Virando agora as atenções para outro tema que lhe diz muito também. O Marcos é o fundador da Escola de Futsal Os Afonsinhos, que é uma referência ao nível da formação de jovens futsalistas.

«É um local especial, é um local hoje muito mais belo e muito mais arranjado, mas é um local que significa muito, não só para mim, mas para todos os afonsinhos que já passaram aqui durante estes 13 anos que fazemos este ano. Este é um espaço de eleição, acaba por ser quase a minha segunda casa, e é um espaço que eu gosto muito de estar, gosto muito de falar com pessoas aqui, porque é aqui que nós conseguimos mudar a vida de muitos miúdos, é que nós conseguimos passar conhecimento para aqueles, alguns deles joguem hoje ao mais alto nível, para que tenham valores, princípios, comportamentos, e este espaço é sempre muito especial, porque é aqui quase que eu me sinto em casa, como já referi.»

Projeto 'Afonsinhos' nasceu em 2011

- Como é que surgiu a ideia para começar reste projeto e de onde vem o nome?

«Os afonsinhos têm um pouco a ver com a história também do Afonso Henriques, que tem uma história muito engraçada aqui no Conselho de Resende, aqui numa freguesia que é Cárquere, onde dizem que ele foi, que tinha um problema nas pernas e foi curado pela santa em Cárquere. Então ficou com tudo aquilo que representava os afonsinhos, com aquilo que representava Afonso Henriques, a revolta, a bravura, a conquista, nós decidimos pôr ali um nominativo mais reduzido, para ser mais, entre aspas, mais apetecível de ser chamado, e aí nasceram os afonsinhos, tem sido um projeto fascinante, sobretudo para os miúdos, que é o mais importante.»

- Qual é a importância do prémio Quinas de Ouro conquistado em 2018?

«As Quinas de Ouro mudaram a vida um pouco do desporto em Resende, em São Martino de Mouros, mas mudaram também um pouco a minha vida. E isso, o prémio é muito importante, foi recebido no dia 19 de Março, que por acaso é o dia do pai, 2018, e a partir daí nós continuamos com a mesma responsabilidade, a fazer o mesmo trabalho, ainda com mais exigência, com mais qualidade, porque sabemos que hoje nos veem como uma referência, e as referências têm que trabalhar mesmo no topo.»

Marcos Antunes a receber as Quinas de Ouro, em 2018

- Os jogadores são também avaliados com base no desempenho escolar…

«Sim, muitas das vezes nós estamos num espaço onde uma margem muito grande de atletas ainda têm apoio social escolar, e nós o que tentamos é fazer com que eles percebam que podem jogar futsal, mas também podem estudar. Que podem estudar e também podem jogar futsal e ser um exemplo. E aquela fornada de 2011, em que dos 14 atletas, 12 conseguiram hoje estar licenciados e a estudar e a viver a sua vida já profissional, é uma mais-valia, um exemplo para todos os outros que aqui vêm e que aqui voltam. Nós conseguimos, o desporto tem algumas valências que às vezes nós, enquanto pais ou enquanto família, não temos tanta clareza em conseguir conquistar. E às vezes a bola no pé, eu costumo dizer na brincadeira que o futuro está na mochila e não na bola no pé. E eles percebem isso, percebem que têm que cumprir aqui e percebem que têm que cumprir na escola. E isso é muito importante, ter esta relação, porque hoje, eu se tiver jogadores mais inteligentes, eu vou ser melhor treinador. E, portanto, o objetivo é que eles também estejam mais entregues e mais propícios a estudar e a aprender, tanto na escola como no futsal.»

- O projeto tem uma vertente de inclusão social. Em que sentido é que a escola tem ajudado à integração dos mais desfavorecidos?

«Aqui são todos iguais. Seja filho de alguém que tem posses ou filho de alguém que não tem tantas posses, aqui nós tentamos sempre ao máximo que tudo fique o mais igualitário possível, que todos tenham o mesmo tratamento. E isso é uma das bandeiras do nosso projeto, que me deixa com certeza muito orgulhoso. Eu também sou a face mais visível, mas há aqui um conjunto de pessoas muito importante que trabalha comigo e que é essencial para aquilo que é o desenvolvimento, principalmente até agora que eu estou muitas vezes fora do país. E eles dão continuidade e com excelência a este trabalho com as crianças e com os jovens.»

 

- Em que medida é que as parcerias com Inter Movistar e SC Braga ajudam ao crescimento do projeto Afonsinhos?

«São muito importantes porque, para além de reconhecerem aquilo que é o nosso trabalho, também abrem portas para aqueles que são os nossos atletas. Nós estamos aqui no interior, mas nós temos aqui uma bandeira muito grande que, para nós, interioridade nunca vai ser sinónimo de inferioridade. Portanto, nós queremos ter sempre os horizontes bem abertos e ter clubes como o SC de Braga, que hoje é um dos clubes mais bem organizados em Portugal, e o Inter Movistar em Espanha, atentos ao nosso trabalho e podermos ter aqui algum relacionamento na parte da troca de experiências, na formação, na troca de jogadores, é muito importante para nós porque nós queremos que os atletas não fiquem só por aqui e que continuem a crescer a nível académico, se possível, e também a nível desportivo.»

- Quando deu início a este projeto, algum dia sonhava ter alcançado tudo o que alcançou até agora?

«Não é ser demagógico, mas eu queria, queria muito. Eu lembro-me que, nas primeiras reuniões que tive, uma das coisas que eu disse foi que, no segundo ciclo Olímpico, nós queríamos conquistar um prémio a nível nacional e nós conseguimos, as Quinas do Ouro, com muito trabalho. Não era só o foco, não era os prémios, não era a individualidade do prémio, mas o reconhecimento de toda a gente que aqui passou e aquilo que fizeram pelo projeto e, sobretudo, pelas crianças e pelos jovens. E o que aconteceu foi que ficamos todos muito contentes e é sempre uma efeméride que vai trazer sempre lembranças muito boas a todos os afonsinhos e a todo o pessoal que trabalha no staff.»

Pavilhão dos Afonsinhos, em S. Martinho de Mouros (Resende)

- E para o futuro, quais são as perspetivas?

«Nós não somos muito de ficar acomodados. O que nós queremos no futuro é já avançar com outros projetos. Nós temos aí um projeto que é o Ondas, em que queremos introduzir a prática desportiva e a performance e o controle da saúde dos netos até aos avós. Uma coisa muito abrangente, criar aí um espaço que está aí a ser cozinhado e estarmos sempre a envolver a comunidade, a trazer a comunidade para o pé de nós, porque hoje é muito difícil separar os afonsinhos da comunidade e a comunidade dos afonsinhos e isso é uma das nossas maiores bandeiras.»

- Reação ao sorteio do CAN (Angola jogará frente a Marrocos, Gana e Zâmbia na fase de grupos)

«O resultado correu dentro daquilo que era expectável. Nós teríamos de apanhar como cabeças de série Marrocos ou Egito. Conhecemos a realidade marroquina em relação à sua capacidade, conhecemos a realidade do Egito também quanto à sua capacidade. O que temos de fazer é lutar e dignificar ao máximo a camisola da seleção de Angola, que é isso que nós vamos fazer e de certeza absoluta vamos dar uma boa resposta. Em relação aos restantes elementos, ou seja, o Gana e a Zâmbia, nós estamos mais ou menos alinhavados e com uma base bastante sustentável de análise e de observação da Zâmbia e do Gana. E depois, é uma competição em que, como se sabe, vale tudo para apurar, os dois primeiros, e nós queremos muito batalhar nesses jogos e decidir claramente que queremos passar como segundo classificado, mas obviamente também queremos ter uma palavra a dizer com Marrocos, até pelo desafio que nos traz enquanto processo destes últimos dois anos. Zâmbia e Gana são seleções um pouco mais físicas, no meu entender, mas temos de contrapor e apresentar um futsal que seja agradável para as pessoas que forem assistir, mas sobretudo que seja eficaz e que nos permita ganhar jogos para estarmos nas decisões finais, que é isso que nós vamos querer. E, portanto, contamos com o apoio do povo angolano, contamos com o apoio de todos os stakeholders envolvidos no processo do futsal em Angola. Temos que estar todos alinhados, bem preparados para darmos uma resposta que seja claramente aquela que todos nós esperamos, sendo que, jogo a jogo, vamos pensando e vamos estabelecendo novos objetivos e novas metas, porque acreditamos muito naquele que é o nosso trabalho, acreditamos muito naquela que é a nossa seleção, e, portanto, vamos com tudo para defender uma bandeira e uma nação, e é esse o espírito que nos vai fazer mover, porque algo que eu aprendi em Angola durante este tempo todo é que a pátria não implora, ordena. Portanto, nós vamos para dentro de campo com um sentimento de querer cumprir o nosso dever e, de facto, no final estarmos satisfeitos com aquilo que foi o nosso trabalho.»

Veja aqui a entrevista completa: