A BOLA NO EURO 2024 Nenhum muro consegue travar a paixão de um adepto
A BOLA esteve na casa de Helmut Klopfleish, o adepto que virou costas ao Muro de Berlim para continuar a seguir o Hertha
BERLIM – Esta é uma história de amor que começa como tantas outras. A de uma criança, levada pela mão do pai, que começa a ir ao futebol e apaixona-se por aquele ritual de vestir a camisola e adorar o emblema que carrega ao peito. Curiosamente, Helmut Klopfleish até nem seguiu a preferência clubística do pai, mas não foi isso que fez dele um adepto de uma coragem notável. Muitos são aqueles que dizem fazer tudo pelo clube do coração, mas poucos arriscariam aquilo que este alemão fez pelo Hertha, em particular, e pela paixão pelo futebol. Esta é a história de um homem que não deixou que o Muro de Berlim o afastasse do emblema que decidiu seguir, mesmo sabendo dos riscos e das ameaças que isso implicava, para si e para a sua família. De um adepto que ficou impedido de ver a equipa do coração na sua própria cidade, e que para alimentar a paixão teve de viajar para leste.
Helmut Klopfleish acaba de fazer 76 anos. Tem alguns problemas de saúde persistentes, mas faz questão de receber a equipa de reportagem de A BOLA na sua própria casa. Só fala alemão, mas a ajuda do filho, Ralf - que também tem papel ativo nesta história de sacrifício e dedicação – ajuda a estabelecer a comunicação. As memórias são impulsionadas pelos objetos guardados pelo apartamento, sobretudo pelos infindáveis álbuns de fotografias que vão ficando, acumulados, em cima da mesa da sala, e que ilustram as aventuras vividas por esta família.
Nascido em 1948, Helmut diz que a paixão pelo futebol começou na rádio. «Na altura não havia televisão, então eu ouvia os jogos na rádio. O Hertha contra o Spandauer SV, ou o Tennis Borussia contra o Viktoria. Eram os clubes da zona ocidental de Berlim», recorda. Tinha acabado de fazer seis anos quando a Alemanha Ocidental conquistou o Campeonato do Mundo, em 1954, e não esquece o Milagre de Berna, quando a seleção orientada por Sepp Herberger conseguiu uma reviravolta frente à favorita Hungria de Puskás - de 0-2 para 3-2 - e que no duelo da primeira fase do torneio tinha aplicado uma goleada por 8-3. «Havia uma loja de televisões em Wedding, que tinha um altifalante do lado de fora, e era possível ficar em frente à montra. Do outro lado tinha uma pequena televisão, onde era possível ver a final. Foi aí que a minha paixão pelo futebol começou verdadeiramente», explica.
PAIXÃO DE BETÃO
Foi a partir desse verão que o pequeno Helmut começou a ir ao futebol com o pai, Wilhelm Robert, mas acabou por construir um elo de ligação a um clube diferente. «O meu pai era mais do Alemania 90, mas eu sempre gostei mais do Hertha. Nós costumávamos ir ao Plumpe, o antigo estádio do Hertha, e desde então que sou adepto», afirma.
O pai de Helmut morreu poucos anos depois, mas a rotina de ir ao Plumpe só foi interrompida em 1961, o ano em que começou a ser construído o Muro de Berlim. «Ficámos todos chocados. Foi terrível para nós. Ficámos zangados, frustrados, mas não podíamos fazer nada», diz, perante o olhar atento da mulher, Marita.
Helmut, que vivia no lado leste da cidade, ficou impedido de ir ao estádio do Hertha. A solução, num primeiro momento, foi acompanhar os jogos o mais perto possível, junto à barreira que dividia a cidade, numa zona a cerca de 100 metros do Plumpe, onde começaram a reunir-se alguns adeptos. «Dava para ouvir o barulho, e depois tive um rádio no qual ouvia o relato da RIAS [emissora criada pelos militares americanos no lado ocidental], e dava sempre para ouvir quando um golo era marcado, o barulho real.»
Na altura ainda não havia muro naquela zona – perto da Bornholmer Strasse -, mas a divisão estava já traçada por bloqueios de estrada, arames farpados, polícias armados e cães. Após três ou quatro jogos, a solução de recurso deixou de ser viável, com o avanço do muro. Helmut, que tinha então apenas 13 anos, ainda chegou a ir para o telhado da casa de um amigo que por ali vivia, mas percebeu que tinha de afastar-se da paixão, ainda que apenas fisicamente.
VIRAR COSTAS AO MURO
A solução foi virar costas ao muro. Literalmente. Foi preciso esperar uma década, privado da possibilidade de ver futebol ao vivo, mas ao tornar-se adulto, Helmut decidiu arriscar uma opção diferente.
«Eu queria ver o Hertha e a seleção nacional ao vivo, e também o Bayern de Munique. Sabia que isso só seria possível se fosse ao Bloco de Leste», contextualiza o protagonista desta história, que contou com a ajuda de um amigo polaco para a viagem inaugural: «A primeira vez foi em Varsóvia, em 1971, num jogo entre a Alemanha e a Polónia. Foi lá que conheci o Franz Beckenbauer e o Jupp Derwal [antigo internacional, na altura treinador-adjunto da seleção] e o massagista, o Erich Deuser. E o selecionador ainda era o Helmut Schon. E assim foi. Depois fui a vários jogos do Hertha, do Bayer, ou mesmo se alguma equipa inglesa jogava no leste, eu ia lá outras vezes. Em criança já seguia com entusiasmo o Manchester United e o Bobby Charlton. Ver o Manchester United era um sonho para mim.»
As viagens implicavam um planeamento estratégico, de forma a evitar problemas com as autoridades. Procurava viajar um ou dois dias antes dos jogos, e também não voltava logo de seguida. O argumento formal para pedir os vistos era turismo, e tudo ficou mais credível quando o resto da família começou a ir também nas viagens. Incluindo Lilli, a mãe de Helmut.
«Em 1978 a Alemanha jogou em Praga e fomos lá ver. Eu tinha um carro muito antigo, um Wartburg. De repente vemos o autocarro da seleção parado junto a um hotel. Não sabíamos onde deixar o carro, estava tudo cheio, e então parei em cima de uma passadeira. A minha mãe ficou duas horas sentada no carro, enquanto nós estávamos no hotel com a seleção. O Ralf sentou-se ao colo do Sepp Maier, estavam lá todos. E a minha mãe sentada no carro, em cima da passadeira», conta Helmut, perante os sorrisos cúmplices da esposa e do filho.
OFERTA ESCONDIDA
Os tempos eram outros, em que o convívio entre jogadores e adeptos era bem mais comum, mas a relação entre a família Klopfleish e algumas figuras do futebol alemão era alimentada também pelo reconhecimento do esforço e do risco que assumiam para marcar presença nos jogos. Alguns jogadores do Hertha tornaram-se mesmo visitas de casa. Ralf, que chegou a mostrar talento para o futebol, chegou a sentar-se no autocarro com os jogadores, ou mesmo a trocar umas bolas durante um treino. «Uma vez, na Bulgária, em época de inverno, não estavam assim tantos adeptos a ver o jogo, fossem de Leste ou do Ocidente, e como o selecionador já conhecia o meu pai, de outros jogos, deu-me a oportunidade de ir para o campo. Lembro-me que havia neve, e o treinador disse que eu podia participar num jogo de quatro contra dois, ou algo assim. Foi inesquecível, para mim», recorda Ralf.
Helmut tinha o hábito de oferecer ursos – símbolo de Berlim- de peluche a treinadores e jogadores. Vimos fotografias com Franz Beckenbauer ou Berti Vogts, por exemplo. A devoção era retribuída com carinho, acima de tudo, muitas vezes convertido em fotografias, autógrafos ou mesmo camisolas.
«O meu filho sempre teve o Karl-Heinz Rummenigge como referência. Foi sempre o seu ídolo. Era um super avançado da época, a nível mundial. Até havia uma canção dedicada a ele, feita em Inglaterra [lançada em 1983 pelo duo Alan & Denise]. O Bayern queria oferecer-nos uma camisola dele, autografada por todos. Mas eu disse que não ia conseguir passar pelos controlos. Fritz Scherer, que era então o presidente do Bayern, disse que ia levar-nos a camisola. Claro que ficámos a sorrir, a pensar que aquilo nunca ia acontecer. Mas ele foi mesmo ter connosco. Uma noite, no escuro, tocou à nossa campainha. Entrou, começou a despir-se no corredor, e tinha a camisola por baixo, para oferecer. Foi uma alegria enorme para nós», sorri.
PERSEGUIDOS ATÉ NO LUTO
Apesar dos momentos de alegria vividos nos jogos de futebol presenciados no Bloco de Leste, e sobretudo pelo tal convívio com as equipas, a rotina da família Klopfleish teve um outro lado, amargo e duro. Foi vigiada pela Stasi, a polícia secreta da Alemanha de Leste, e frequentemente detida e interrogada. «Queriam saber nomes de pessoas que faziam o mesmo, mas eu nunca disse, nunca revelei nenhum», garante Helmut, que chegou a perder o emprego por causa da perseguição que sofria.
«Eu trabalhava numa empresa de eletricidade, e o meu chefe tinha de comunicar sempre que havia serviços fora. E as autoridades davam sempre a indicação de que eu não podia trabalhar aqui nem acolá. Não estava autorizado a ir. Tinha uma proibição secreta de trabalhar, por assim dizer. Não diziam isso em concreto, mas eu não podia ir para lado nenhum. O meu chefe dizia que eu devia ter feito alguma coisa. Perdi o emprego e comecei a trabalhar numa empresa de limpeza de janelas, mas no fim, já só me deixavam limpar casas de banho», explica.
A gota de água, para o chefe de família, foi quando as «manobras de subversão» começara a afetar também a esposa e o filho. Conta que os professores foram pressionados para atribuir más notas a Ralf, que foi impedido de avançar para o ensino superior, e a promissora carreira de futebolista ficou arruinada quando sofreu uma lesão grave durante um campo de treino militar que o obrigaram a fazer, aos 15 anos.
Classificado como inimigo do Estado, Ralf não foi operado logo na altura. Isso só aconteceu em 1991, quando a família já vivia na zona ocidental de Berlim. Perante a perseguição à família, Helmut apresentou o requerimento para saída permanente da Alemanha de Leste logo em 1986, mas a autorização só chegou em 1989, e com contornos particularmente maquiavélicos.
«A minha estava no hospital, gravemente doente com cancro. Tinha apenas horas de vida. Depois disseram-nos que tínhamos de partir no próprio dia, até às 11 horas. Eu disse que não podia sair, que a minha mãe tinha apenas horas de vida, e queria dar-lhe a mão. Não tiveram piedade e fomos deportados. Não podíamos fazer nada. A minha mãe morreu quatro dias depois», recorda Helmut, ainda amargurado.
EMOÇÃO OLÍMPICA
Em contraste absoluto com essa dor, de nem sequer ter a possibilidade de fazer o funeral da mãe, Helmut conseguiu começar uma nova vida, com a família, no lado ocidental da cidade. Ainda antes da queda do Muro teve a oportunidade de voltar a ver o Hertha jogar em casa, que já desde 1963 era o Estádio Olímpico.
«Foi um momento muito bom. Logo quando chegámos e começámos a ver o Estádio Olímpico ao longe. Eu já tinha sentido isso quando era criança, mas o meu filho não. Foi um grande momento para nós, num jogo contra o Preussen Munster. Foi para a segunda divisão, não foi propriamente um grande jogo, mas havia 14 mil pessoas a assistir. Ainda me lembro, como se fosse hoje, de terem escrito no jornal do dia seguinte: 14.444 espectadores. Ficámos felizes, com uma vitória do Hertha, por 2-0, e pela possibilidade de irmos lá em liberdade, sem sermos vigiados, nem intimidados de alguma forma. Foi uma experiência muito boa, o primeiro jogo no Olímpico. Ainda hoje é», diz Helmut, membro do Conselho Superior do Hertha.