Mundial Feminino-2023 «Não tenham medo de ganhar!»
Fez parte da Seleção Nacional masculina que, pela primeira vez na história, levou o nome de Portugal a uma fase final de um Campeonato do Mundo, o de Inglaterra em 1966. António Simões tinha, então, 22 anos e no jogo de estreia a 13 de julho com a Hungria fez, logo aos 2 minutos, o passe para o 1-0 de José Augusto. A equipa das quinas ganharia por 3-1, dando início a um Mundial em que chegaria ao 3.º lugar, o primeiro transmitido em direto para todo o globo e no qual Eusébio se consagraria como estrela universal.
Agora, 57 anos depois da proeza dos homens, chegou a vez das mulheres. Que na manhã deste domingo, às 8.30 horas de Portugal Continental, darão o primeiro pontapé de sempre num Campeonato do Mundo. Os Países Baixos, seleção derrotada na final da última edição (2019), são as adversárias.
Em entrevista exclusiva a A BOLA, António Simões, hoje com 79 anos e que como treinador esteve na génese da primeira seleção feminina portuguesa no início dos anos 90, estabelece um paralelo entre a estreia masculina em Mundiais e a das Navegadoras na competição organizada por Austrália e Nova Zelândia.
– O que se sente à beira da histórica estreia pela Seleção Nacional num Mundial?
– São muitos sentimentos. E também são eras diferentes, a minha em 1966, a das Navegadoras agora em 2023. Mas os sentimentos de responsabilidade e de honra e orgulho de vestir a bandeira de Portugal num Campeonato do Mundo não se comparam a nada. Podemos ganhar a Liga dos Campeões, campeonatos e outras provas, representar a Seleção muitas vezes, mas se não formos a Mundial faltará sempre qualquer coisa. A par dos Jogos Olímpicos, o Mundial de futebol é a única competição vista no Mundo inteiro. É um privilégio representar o País. A partir daí, podemos dizer: ‘Eu representei o País ao mais alto nível’. É uma sensação fantástica, única.
– E, no seu caso, foi uma estreia em grande, com assistência logo aos 2 minutos para o golo de José Augusto à Hungria…
– Como esquecer? Era uma mania que eu tinha, essa de fazer passes para alguém marcar golos [risos]. Eu era o homem das assistências. Hoje fazem a contabilidade, no meu tempo, não. Olhe eu, com quase 600 jogos como profissional (447 deles no Benfica, entre 1961 e 1975), quantos assistências terei feito… Muitas, decerto, sobretudo para o Eusébio e o Torres. É fazer parte do golo.
– Ouvindo-o, fica a ideia de que, individualmente falando, celebrava as assistências como se de golos se tratassem?
– E são. São, como disse, parte do golo. Os golos não existiriam sem elas. Há uma percentagem que pertence ao jogador que faz o passe. A mim dava-me um prazer brutal ver a bola chegar a um companheiro e ele fazer o golo. Tantas vezes celebrei sozinho só por ter feito o passe decisivo.
– Entretanto, se calhar como acontece agora com a Seleção feminina, Portugal chegou ao Mundial-66 como ‘outsider’, quase desconhecido, pouco valorizado no ranking de favoritos… E foi 3.º, ainda hoje a melhor classificação de sempre em Campeonatos do Mundo. Podem as ‘Navegadoras’ fazer algo semelhante?
– Há alguns pontos comuns, mas há uns muito diferentes. Desde logo… o que era o Mundo em 1966 e o que é hoje. Nos anos 60, era impensável admitir que as mulheres jogariam futebol. E muito menos pensar que jogariam num Mundial. Socialmente, há um abismo colossal. Ainda bem que a mulher se emancipou e hoje pode jogar, num ato de liberdade impensável há 30 ou 40 anos. É reflexo da sociedade que o desporto para a mulher tenha hoje uma aceitação sem reservas. Diria, até, que o Desporto mostrou que a mulher pode competir no espaço antes meramente exclusivo dos homens.
– E o futebol, que foi dos últimos a abrir portas à Mulher, consegue ter hoje esse papel de integração e busca de igualdade?
– Sem dúvida! O futebol feminino dá hoje a imagem da importância da mulher para o jogo, para a sociedade e para a humanidade.
– Pensava desse modo em 1993 quando foi convidado a criar as bases de uma Seleção feminina e depois a treiná-la?
– Eu questionava nessa altura… se há Rui Costas, Figos, João Pintos entre os homens também tem de haver entre mulheres. Onde estão elas? É uma questão genética. Mais tarde ou mais cedo, as craques teriam de aparecer. E demorou muito tempo, mas conseguimos. Temos hoje na Seleção jogadoras geneticamente muito boas futebolistas.
– Que expectativa tem então para este Mundial feminino?
– As diferenças são enormes. Hoje há organização, condições de treino ao nível das melhores, equipas técnicas de topo, clubes a investir a sério em jogadoras e até ao nível do poder que Portugal tem agora no futebol europeu e mundial nada se compara a 1966. Sim, já tínhamos conquistado a Taça dos Campeões Europeus [Benfica em 1961 e 1962], mas faltava a consagração do País. E do Eusébio! E isso aconteceu. Eusébio tornou-se universal através do Mundial de 1966. E é por isso que ver agora estas jovens jogadoras a ir para um Campeonato do Mundo cheias de sonhos é fantástico. E já não queremos só que participem bem. Hoje até já exigimos que vençam. E isso é o melhor elogio que podemos dar-lhes.
– E em 1966 o tal Portugal desconhecido acreditava que poderia fazer o Mundial fantástico que fez? Isto tendo em vista o que poderão fazer, 57 anos depois, as estreantes Navegadoras?
– Imaginem o que é um grupo de 22 jogadores chegarem a Inglaterra em 1966 e à nossa espera estar apenas o Nuno Ferrari, grande nome dessa casa, d’A BOLA, enorme repórter fotográfico, um amigo. Só ele! Não estava mais ninguém. O jornal A BOLA era o único que acompanhava as equipas e a Seleção portuguesa. Nós não tínhamos noção da dimensão futebolística do nosso País.
– E agora já temos noção dessa dimensão?
– Claro que sim. Além de que hoje jogam em liberdade, já são reconhecidas por cá e internacionalmente e têm estatuto para eventualmente surpreender. Para ganharem e não só participarem. O trabalho da FPF nas últimas décadas permite-nos ter esperança. Permite-nos ter vontade de torcer por elas à distância.
– E... vontade de acordar cedo, como elas têm pedido?
– Exatamente. Como as madrugadas à espera das medalhas olímpicas, como a de Carlos Lopes em 1984. A expectativa, com as devidas diferenças das modalidades em causa, é semelhante. A vontade de ver a consagração da nossa Mulher, da mulher portuguesa, no Desporto e em particular no futebol. Vimos a Rosa Mota e outras, mas faltava ver isto no futebol.
– Como se sente à beira desta estreia feminina no Mundial o homem a quem pediram, em 1993, para criar, organizar e treinar uma Seleção Nacional de mulheres?
– Claro que há algum orgulho, alguma sensação de pertença. Naquele tempo havia uma dezena de clubes e cerca de 500 jogadoras. Foi um percurso duro. Andámos pelas Associações distritais por todo o País, que já tinham gabinetes próprios, na sequência de iniciativa do Carlos Queiroz. E começámos a jogar, mas com muitas limitações. A capacidade física e a força motora eram muitos inferiores aos de outras nações.
– Teve de fazer muitos quilómetros, Portugal fora, imagino…
– Ui, muitos [risos]. Mas foi muito aliciante. Com a esperança de que era possível fazer algo diferente. E mais (e deixo-lhe uma confissão): ter sido treinador de mulheres levou-me a conhecer de um modo inimaginável o lado feminino, como nunca tinha conhecido até então. Não foi uma tarefa fácil. A qualidade era baixa, havia muita inexperiência. Eu não fui só selecionador, eu ensinei-lhes muitas coisas sobre o futebol.
– E faz sentido continuar a comparar a qualidade entre futebol masculino e feminino?
– Duas notas sobre isso. A primeira tem a ver com o reconhecimento público da jogadora de futebol. E hoje há estádios com 70 mil pessoas a ver futebol feminino. A segunda é o reconhecimento para elas próprias, a convicção individual de que podem jogar bom futebol. E, sim, seguir o seu caminho, sem comparações. Acreditarem nelas!
– Que mensagem deixaria às 23 jogadoras portuguesas no Campeonato do Mundo?
– É meio paradoxal, mas é isto: que sintam a honra de representar Portugal no maior de todos os palcos e que, ao mesmo tempo, se libertem de algum desse peso, dessa responsabilidade, e expressem o valor que têm. Não tenham medo de ganhar! Porque chegou o momento de mostrarem que são capazes. Já estão de parabéns por estarem na fase final; agora, é hora de confirmarem o porquê de haver cada vez maior ilusão em torno do futebol feminino no nosso País.