Marinho Peres fugiu de Barcelona e não impediu Figo de fugir para Barcelona
Marinho Peres

Memórias Marinho Peres fugiu de Barcelona e não impediu Figo de fugir para Barcelona

FUTEBOL19.09.202318:37

Espante-se com o que ainda faltava contar sobre o filho de um médico espanhol que tendo sido capitão da seleção do Brasil teve de escapar de Espanha clandestino num autocarro – e ganhou uma Taça ao Benfica proibindo os seus jogadores de falarem com o adversário

Antes, bem antes de ter sofrido AVC que lhe abalou a saúde (e dos problemas de coração que o levaram à morte após um mês de internamento num hospital de Sorocaba) – Marinho Peres revelara-o, divertido (como era de seu timbre): «Quando eu treinei o Sporting, a direção me pediu para eu assistir a um treinamento do juvenil. Ou melhor: pediram para eu olhar bem para o garoto gordinho do time. É, ele era meio gordinho mas… realmente muito bom. Tão bom que logo decidi levá-lo para treinar com o time de cima. Na hora, reuni com o departamento médico para a gente combinar logo a forma de desenvolver a sua parte muscular para ficar mais forte e imune aos choques dos adversários. Lá, no time de cima colocava ele quando estávamos ganhando. Tinha já, sem dúvida, muito talento mas precisava aprender onde jogar. Logo depois, coloquei ele de titular jogando como ponta e se revezando com o outro atacante. Às vezes ainda me telefona, o quero muito bem porque é um cara decente - e um dos grandes craques do futebol mundial…»

«GAROTO GORDINHO» ERA FIGO

O «garoto gordinho do time» era Luís Figo – e, antes, bem antes também, de ter entrado em Portugal como treinador do V. Guimarães (por meados de 1986), Mario Peres Ulibarri tinha já marcada a fulgor a história do futebol (e não apenas como o capitão da seleção do Brasil no Mundial de 1974). Tendo nascido em Sorocaba (no interior de São Paulo), a 19 de março de 1947, lançou-se no futebol no Estrada de Ferro Sorocabana e, aos 16 anos, dispensaram-no ao São Bento de Sorocaba. 

Dos despojos da II Guerra Mundial, saltaram os pais de Espanha para o Brasil – e ele logo se tornou médico «reputadíssimo» em Sorocaba. Querendo que Marinho lhe seguisse as pisadas, o filho deu-lhe volta ao desejo – escolhendo estudar Economia. O curso perdeu-se-lhe pelo caminho ao desafiarem-no (pelos seus 20 anos) para a Portuguesa. 

COM PELÉ, ESPANTO EM CABUL

Em 1972 juntou-se no Santos a Pelé, Edu e Carlos Alberto Torres. «Fácil, muito fácil a convivência com Pelé. Era o Rei do Futebol, continuava cuidando-se como ninguém, dentro e fora do gramado. E nunca parava de nos dizer: “Não tomem golos que a gente os faz” – como se nos dissesse: vocês aí da defesa cuidem da baliza que nós do ataque vamos fazer a nossa parte. E, depois, havia, obviamente, coisas inexplicáveis com ele, por causa dele, sobretudo nas digressões mundiais. Numa ocasião, depois de jogarmos na Austrália, parámos em Cabul, no Afeganistão. Havia uma peregrinação de muçulmanos que pararam imediatamente quando se aperceberam da presença do Pelé. E também paravam algumas guerras só para o ver jogar – no Congo, no Senegal, no Egito.» 

COTOVELADA E SOBROLHO ABERTO

Campeão paulista, abriu-se-lhe o escrete – e Zagallo nomeou-o para capitão do Brasil no Mundial de 1974 (nesse Mundial em que o Brasil caiu aos pés da Holanda – com o esplendor de Cruyff e o carrossel de Rinus Michels a alvoroçar os adversários, revolucionários na tática do futebol total). «Eles nos baralharam por completo com aquele futebol inovador em que, de repente, dois ou três adversários estavam perto da bola vindos sei lá de onde, como abelhas para picar, picar a gente… Ainda aguentámos o 0-0 até ao intervalo, mas depois Neeskens e Cruyff marcaram e tiraram-nos da final. Durante a primeira parte, o Rivelino disse-me que o Neeskens estava a marcá-lo tão bem que ele nem conseguia dar dois toques seguidos na bola. Aí eu quis anular o Neeskens numa determinada jogada e dei-lhe uma brutal cotovelada, sem o árbitro ver. Acabei por lhe abrir o sobrolho…» 

Sabendo-o filho de espanhóis (o pai era madrileno, a mãe era basca) – o Barcelona chamou-o a juntar-se a Cruyff e e a Neeskens (por lá andando, também Sotil): «Apesar da cotovelada seis meses antes, ao saber que eu ia aterrar em Barcelona o Neeskens se ofereceu para ir com o presidente me receber. Nem imaginam o meu espanto quando, ao descer as escadas do aeroporto, vi o cara lá ao fundo. Fechei os olhos, respirei fundo, e quando os abri o que eu vi foi ele a apontar para o sobrolho e a rir-se. Aí também me ri e fiquei descansado…»

A FUGIR DA TROPA DO DITADOR

Não demoraria muito, porém, a cair numa tremenda aventura – na sequência do solavanco em inscrever-se Mário Peres Ulibarri como hispano-brasileiro: «Só podiam jogar três estrangeiros na época. Depois de quase um ano na espera acabei sendo motivo de gozação – com todo o mundo dizendo que o Barcelona tinha contratado um cara para servir o… exército. O Barcelona não imaginava tanta encrenca comigo, se imaginasse não teria me contratado. Era uma gritaria nos estádios, não deu para ficar mais, tive de fugir, senão iria ter de trabalhar para os navios de guerra. Vivendo-se a ditadura de Franco, chamaram-me para a tropa. Argumentei que já tinha feito a tropa no Brasil…» 

Receio de que, como refratário fosse parar à prisão e já sem… o passaporte espanhol em seu poder, furtou-se a isso em rocambolesca aventura: «Fui, clandestino, em um ônibus, cheio de gente, que atravessou a fronteira para França. Me pegaram em Nice e me levaram a Paris - para pegar o voo para o Brasil… E só pude voltar a Espanha, sabe quando? Em 1999 – para a celebração dos 100 anos do Barcelona. E, para isso, foi preciso até fazer acordo com a justiça local, que eu ainda estava, lá, na lista dos procurados.»

A ENSINAR SCOLARI ATÉ

Indo, então, para o Internacional de Porto Alegre Marinho Peres não chegou apenas ao título de campeão brasileiro (de 1976) – espalhou por lá o futuro do futebol de que se apercebera em Barcelona: «Nesses dois anos, quem mais me marcou? Rinus Michels, obviamente. Como treinador, um espetáculo. Na estreia oficiosa pelo Barcelona, ele não parava de me fazer sinais para subir no terreno. Pôxa, nunca tinha jogado assim e disse-lhe isso mesmo no balneário, ao intervalo. Mas o Rinus queria uma defesa ofensiva e eu tive de aprender essa marcação à zona com pressão. Quando saí do Barça, difundi esse esquema entre os brasileiros. O Scolari, por exemplo, tomou esse conhecimento. Ele jogava no Caxias e, estando eu já no Internacional, ficávamos horas a falar sobre táticas do presente e do futuro…» 

ESPANTO DE MOZER COM ELE MUDO

Treinador começou por ser no América do Rio em 1981 – e foi de lá que, cinco anos depois, saltou para o Vitória de Guimarães. Com o terceiro lugar no campeonato, saltou para o Belenenses e ganhou ao Benfica a Taça de Portugal (de 1988/1989): «Essa nossa vitória foi uma loucura, uma divinal loucura! Eu me dava muito bem com o Ricardo e com o Mozer, até  éramos vizinhos no Restelo, muitas vezes jantávamos juntos. Só que, antes da final da Taça, proibi os meus jogadores de falarem com os jogadores do Benfica – e eu também fiquei… mudo com eles. Quando, nessa tarde, os dois autocarros chegaram ao Estádio Nacional, todo o mundo cumpriu o meu plano. Vindo o Ricardo e o Mozer para me falar, para me dar um abaço – eu afastei-me, calado. Ainda ouvi um deles, surpreendido, a afirmar: ‘Olha só esse aí agora metido a besta… Vamos lá enchê-los de golos, então!’. Os meus jogadores ouviram e foram para o gramado com o orgulho ferido, cheios de raiva – e deu no que vocês sabem: ganhámos por 2-1.» 

EM VÃO, PEDIDO POR FIGO

Sousa Cintra foi buscar Marinho ao Restelo e era lá que estava quando voltou a cruzar-se com Cruyff (com Figo de permeio – e já a correr para a imortalidade): «Vindo o Barcelona jogar com o Benfica, Cruyff me procurou, pedindo informações sobre o adversário. Indo jantar com ele, às tantas perguntou-me por Figo e eu lhe disse: É craque da cabeça aos pés, vai ser campeão em todo o lado! No segundo seguinte arrependi-me e pedi para ele: Não vai fazer isso comigo, o cara está já me segurando aqui, não compra o cara, nada hein! Deixa ele comigo mais uns anos, por favor – e, nem uma semana deu, Cruyff me ligou dizendo que estava o negócio feito!»