Manifesto anti-autogolos
Imagem do autogolo de Andrés Escobar frente aos EUA no Mundial-1994 que custou a vida ao central colombiano, assassinado um mês depois em Medellín (D. R.)

OPINIÃO Manifesto anti-autogolos

INTERNACIONAL29.06.202411:40

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Sabe que jogador esteve mais perto de marcar pelo Brasil na estreia na Copa América frente à Costa Rica? Se respondeu Vini Jr, errou. Rodrygo? Não. Endrick? Também não. Foi o central costarriquenho Quirós, num desvio infeliz, salvo no limite pelo companheiro de equipa Sequeira.

O exemplo da Copa América, entretanto, serve apenas de gancho para o Euro, onde, como muita gente vem notando, há chuva de autogolos - são sete até ao fim da primeira fase. No Euro passado foram 11. No Mundial de 2018 chegámos a uma dúzia. Assim como é nas estradas mais rápidas e movimentadas que os acidentes são mais comuns, num futebol cada vez mais a alta velocidade e em que cada metro quadrado do terreno é disputado por duas, quatro, às vezes, seis pernas, os autogolos vêm aumentando.

Mas não se pretende discutir aqui o crescimento dos autogolos - pretende-se discutir o seu desaparecimento. Ou, mais bem explicado, o desaparecimento do seu registo. A quem agrada o registo de um golo como autogolo? A absolutamente ninguém. Logo...

Conforme a classificação do economista italiano Carlo Cipolla em Le Leggi Fondamentali della Stupiditá Umana, os inteligentes conseguem, pelas suas ações, criar vantagens para si e para os outros. Os bandidos só vantagens para si. Os crédulos só vantagens para os outros. E os estúpidos desvantagens para toda a gente - quem teve a decisão de registar um golo como autogolo cabe, com todos os méritos, neste grupo.

O registo do autogolo não agrada ao defesa infeliz, que preferia evitar essa mancha na carreira. Não interessa ao último atacante a tocar na bola, a quem dava jeito somar mais um golo no currículo. Irrita o público que quer festejar o golo de um dos seus. E ainda incomoda árbitros, designers gráficos e jornalistas, obrigados, na ficha de jogo, a acrescentar ao evento um arreliador «p.b.», iniciais de própria baliza, entre parêntesis.

Ah, mas seria justo atribuir o segundo golo português com a Turquia a Cancelo? Para começar, esse autogolo faz parte da categoria dos excepcionais, a maioria resulta de um desvio mínimo, e, depois, a pergunta certa é: prejudicaria alguém? A não ser um eventual inimigo figadal do atleta do Barcelona ou um espírito muito chato e muito burocrata, não. E pouparia Samet Akaydin de um constrangimento para a eternidade.

Um constrangimento que persegue, por exemplo, a seleção de Trindade e Tobago, que em mundiais tem mais autogolos registados, um, do que golos marcados, zero. E se naquele Estados Unidos-Colômbia em 1994, o golo fosse atribuído ao americano John Harkes e não a Andrés Escobar, quem sabe se não teríamos poupado uma vida.