ENTREVISTA A BOLA Kitó Ferreira: «Objetivo é ser campeão no Al Nassr. Cristiano Ronaldo? Ganhou contra o mundo!»

Português é o treinador de futsal do poderoso emblema saudita só tem um objetivo: vencer títulos. Os elogios infindáveis a CR7. O percurso, a tragédia que ultrapassou e a importância da família

Iniciou a carreira há mais de 20 anos, em Leiria, numa altura em que o futsal tinha pouca expressão. Como é que nasceu esse bichinho?

Em primeiro lugar, quero agradecer profundamente o convite a A BOLA. Falar de futsal, e mais do que ser importante para mim, é importante para o futsal. E o futsal nunca esteve na minha cabeça até aos 35 anos. Joguei futebol, fui guarda-redes do UD Leiria, do Marrazes, do Mirense, do Portomosense. Alcunha de padeiro voador? Eu era rápido entre os postes [risos]. A alcunha surgiu quando eu estava nos juniores do UD Leiria, foi-me dada num jogo em que fiz um voo praticamente de um poste ao outro e o diretor que estava no banco, o sr. José Manuel Cartaxo, levantou-se e disse que eu parecia um padeiro voador. E padeiro porque eu era, de facto, padeiro. Desde os 14 até aos 19 anos. Relativamente ao futsal, a partir de determinada altura, o sr. Máximo, que já partiu e que, na altura, tinha uma ligação com uma equipa de futsal, o Núcleo Sportinguista de Leiria, convidou-me para ser diretor. Ele tinha-me apoiado bastante na minha vida pessoal e eu não tinha forma de lhe dizer que não. Foi na época 1999/2000, a uma semana de começar o campeonato da III Divisão, e precisamente na altura em que se muda a designação de futebol de cinco para futsal. O nosso treinador, que era o Sérgio Familiar, teve uma doença grave, e o sr. Máximo chamou-me, na presença da equipa, ainda treinávamos no velho ringue do Parque do Avião, no Bairro dos Anjos, e lançou-me o repto de assegurar a equipa até encontrar um novo treinador. Fiquei muito espantado e no meio da reunião ele perguntou-me se eu estava com medo. A verdade é que essa pergunta fez a diferença e eu só questionei a que horas era o treino. Não tinha qualquer conhecimento, apenas as experiências do futebol. Aliás, no primeiro treino ainda dizia o ponta de lança e os jogadores é que me corrigiam [risos]. O primeiro jogo, em que ganhámos 7-6, mudou a minha vida. As emoções, o que vivi durante aqueles minutos, levaram-me a estar aqui hoje.

Nessa altura, deparou-se com um problema familiar grave, que foi a morte da sua esposa. Foi nessa dificuldade que foi buscar ainda mais forças?

É uma excelente pergunta. Claro que tem uma carga emocional forte, mas sempre enfrentei as cargas emocionais que me foram aparecendo ao longo da vida. Tinha duas meninas pequeninas, a Inês e a Bárbara, e quando essa tragédia aconteceu estava a transitar do Fátima para a Burinhosa.  Não tenho dúvidas nenhumas em afirmar que foi o futsal que me salvou. Se quisermos ser ainda mais assertivos, é o desporto que me ajuda a ser a pessoa que sou hoje. Fiquei mais preparado para enfrentar determinadas situações, ainda que ninguém esteja preparado para lidar com uma tragédia como aquela que eu vivi. Mas enfrentei situações com um comportamento que talvez não o tivesse noutro tipo de vivências.

Voltando ao plano desportivo, já na Burinhosa chega a um patamar de destaque. Vence a II Divisão Nacional e leva o clube à elite. É aí que começa a despontar.

Em termos de mediatismo, sim. Mas não divido o meu trajeto, todos os clubes tiveram uma importância enorme. Claro que a Burinhosa, até pela sua essência, pelo facto de ser uma aldeia com 500 habitantes que respira futsal, deu-me tudo isso. O título da II Divisão, o 3.º lugar na Liga, termos chegado sempre aos ‘play-off’ e também à ‘final-eight’ da Taça da Liga… No fundo, o estarmos sempre nas decisões. Foi aí que atingimos o mediatismo, sim, mas já antes, no Arnal, tinha sido treinador e coordenador e isso também me deu o prazer de formar jogadores e treinadores. Essas valências permitiram-me chegar à Burinhosa sendo outro homem, outro treinador.

Passou pelo Leões Porto Salvo, foi para a Roménia e regressa para treinar o Eléctrico, antes de voltar a emigrar. Foram oportunidades a surgir…

Não. Teve que ver com trabalho, dedicação e paixão que, no fundo, é muito da essência do futsal. Todas essas fases foram muito importantes para mim. Desde logo, sair de Leiria e ir para Lisboa, na altura do Leões Porto Salvo. Isso deu-me valências muito importantes. Depois, o regresso, ao Eléctrico, em que conseguimos trabalhar num clube que é uma bandeira do Alentejo. Saí ao fim de três anos, completamente apaixonado. Mas além da importância de todas essas instituições, também não posso esquecer que durante o meu trajeto estive sempre ligado às seleções distritais da AF Leiria, nomeadamente a seleção distrital para surdos, de onde saio para a seleção nacional para surdos, em que participámos em dois Europeus, um na Bulgária e outro na Rússia, mas estive também oito anos como treinador universitário no Instituto Politécnico de Leiria. Portanto, não havia tempo para as oportunidades. As coisas foram-se sucedendo naturalmente e o tempo foi sempre para trabalhar. A mudança para o estrangeiro permitiu-me passar a viver do futsal, porque até aí eu vivia para o futsal. E isso são duas coisas completamente diferentes. Itália foi fantástico, Roménia, apesar de terem sido dois meses, foi também importante porque deixámos vincados os valores e princípios do treinador português.

Seguiram-se três anos no Kuwait, em três clubes diferentes, e na última época conquistou a Taça. O que trouxe de lá, tanto desportiva como culturalmente?

Muita coisa. Uma cultura completamente diferente, que me permitiu ter experiências que nem sequer faziam parte dos meus sonhos. O que ganhei em três anos no Kuwait é poder dizer que o dia a dia de um treinador se chama contexto. Algo que não fazia parte da ideia de jogo, mas que tem de estar adaptado ao modelo de cada equipa e de cada clube onde trabalhamos. No Kuwait, tirando a bola e cinco para cinco dentro do campo, tudo o resto é diferente. A nível humano, o que posso dizer é que a imagem que nos chega aqui ao Ocidente não tem muito que ver com a realidade de lá. Estamos a falar de pessoas que sabem receber e valorizar como ninguém. Têm as suas regras, as suas leis, e nós temos de cumprir. Mas eu assisti a situações que já não me lembro de assistir em Portugal, como por exemplo as crianças jogarem à bola nas ruas até às duas ou três da manhã, ou como qualquer pessoa a andar na rua de forma totalmente segura. Tal como via encontros de amigos e/ou familiares, algo que, infelizmente, no nosso país tem-se perdido muito. Desportivamente, e só para ter uma ideia, o grande dérbi do Kuwait é o Qadsia-Al Arabi, os dois clubes que treinei nas duas últimas épocas e que pode comparar-se ao Sporting-Benfica em Portugal. Nesses dias, o Kuwait pára. Quando há dérbi, as famílias estão juntas até à hora do jogo, independentemente do clube por que torcem, e depois do jogo volta a ser assim. Gostava de ver isto no meu país. E não digam que a rivalidade lá não atinge os mesmos patamares do que cá, porque atinge. É exatamente igual. Mas o conceito social e de família supera tudo e isso é fantástico.

Kitó Ferreira venceu a Taça do Kuwait ao serviço do Al-Arabi. (Foto: D. R.)

A realidade agora é o Al Nassr, que tem como grande bandeira o Cristiano Ronaldo. Como é que perspetiva esta aventura?

Este último verão foi intenso, felizmente, e tive muitos convites, especialmente do mundo árabe, mas também alguns da Europa. Tenho objetivos que passam por grandes desafios em detrimento de outras situações. Se não olho para o dinheiro? Claro que sim, sem hipocrisias. O dinheiro é importante, obviamente. Mas o meu perfil enquanto homem e treinador apontava-me para outros desafios. O Al Nassr apareceu e depois de duas ou três conversas chegámos a bom porto.

O Al Nassr vai apenas para a terceira época enquanto equipa de futsal. Um projeto praticamente novo de um clube que ainda não conquistou títulos. É esse o desafio?

Exatamente! Esse é um dos pormenores que eu vou colocando ao longo da minha carreira. Ainda que estabilizar a minha família e equilibrar-me do ponto de vista económico seja também muito importante, logicamente.

É o contrato de uma vida?

Mais do que falar do contrato de uma vida, e percebendo e respeitando a pergunta, respondo de outra forma. Acho que se começa a valorizar o futsal. Mais do que falar a nível individual, é importante realçar a valorização que é dada aos agentes do futsal. Porque a grande realidade é que o futsal é extremamente intenso, produz espetáculos fantásticos em todo o mundo, e continua muita gente de enorme competência a trabalhar de forma gratuita. O futsal merece isto e muito mais e também nisso temos de agradecer ao mundo árabe, que tem dado esse reconhecimento à modalidade. Veja-se, por exemplo, os jogadores e treinadores de futsal que vão para a liga saudita. O dinheiro é importante em todas as áreas e destaco o reconhecimento que o futsal finalmente começa a ter.

Já pensou no dia em que estiver com Cristiano Ronaldo na realidade do Al Nassr?

Quando trabalhamos no exterior, basta chegarmos ao aeroporto e darmos o passaporte para percebermos o orgulho que é ser português quando do outro lado reagem com uma associação a Cristiano Ronaldo. Só temos de dizer obrigado a Cristiano Ronaldo por ter nascido português. Representar o mesmo clube que ele é um grande orgulho para mim. É a nossa referência no mundo inteiro. Penso que o Cristiano há muito tempo que deixou de ser o melhor do mundo, mas esses três ou quatro que são, agora, os melhores do mundo, tiveram azar porque nasceram na era em que um rapaz é o melhor do universo. Enquanto os outros tiveram de ganhar no mundo, o Cristiano teve de ganhar contra o mundo. Isto é uma diferença enorme! E nós só temos de sentir-nos orgulhosos por aquilo que o Cristiano representa para nós enquanto portugueses. Então trabalhando no estrangeiro, é uma alegria infindável. Ele é a nossa bandeira e só temos de agradecer muito e eternamente ao Cristiano por tudo o que ele tem feito.

Técnico luso orienta Pany Varela, o internacional português que é o melhor jogador de futsal do mundo. (Foto: D. R.)

Sonha com a inscrição do seu nome na história do Al Nassr?

Tenho 55 anos e há muito tempo que a hipocrisia me abandonou. Eu quero ser campeão nacional no Al Nassr. Ponto final. Ou sim… ou sim. Foram-me colocadas várias situações em termos contratuais, mas eu disse que só queria um ano [de vínculo] porque quero ser campeão e no final do ano conversaremos. Não estou com isto a ter a presunção de dizer que vou ser campeão. Eu quero ser campeão, conheço a liga saudita e sei a quantidade de clubes que estão a apostar para irem atrás dos mesmos objetivos que nós, sei da dificuldade que vai ser, mas este é um desafio lançado por mim próprio. Mais do que deixar a marca Kitó, o que quero é que a marca Portugal seja cada vez mais valorizada no futsal.

Com a ajuda preciosa de Pany Varela, o melhor jogador de futsal do mundo…

Poder trabalhar com o melhor do mundo é um prazer e um orgulho enorme, obviamente.

Será o quarto ano consecutivo fora de Portugal. Estar longe da família é a maior dificuldade?

Essa é a parte negativa de tudo isto. Tenho duas meninas, uma de 26 e outra de 24 anos, a mais velha já é mãe do Gabriel, que tem três meses, e já depois de eu ter refeito a minha vida familiar nasceram a Raquel e o António. Claro que tudo isto é muito difícil, mas é o trajeto que nós escolhemos e é também para eles. Muitas vezes, no seio familiar, coloca-se em cima da mesa o porquê de não irmos juntos, mas a valorização que é dada aos agentes do futsal ainda não dá para mexer na estrutura familiar por forma a que todos eles possam acompanhar o treinador. Dependemos dos resultados e temos de estar constantemente com as malas prontas. No meu caso, o que levo sempre é a máquina de café [risos]. Dar esse trauma à família, principalmente aos meninos mais pequeninos, no que diz respeito à mudança de língua, escola, amigos, não faz sentido. Economicamente, lá está, ainda não é possível dizer-se que estamos preparados para isso. Lá chegaremos…

Esse cenário também tem uma pessoa muito importante por trás…

Obviamente que a Mariana [esposa] foi extremamente importante naquilo que foi o refazer da minha vida e sinto-me extremamente orgulhoso pelo que temos passado e por todo o nosso envolvimento familiar. No fundo, são duas crianças que estão com ela, mas eu sei que as crianças têm muito orgulho naquilo que eu faço, assim como eu também tenho muito orgulho no que elas fazem. A Mariana… tem sido mãe e pai.