Sérvia Jovanovic (Leça) recorda amizade em cada livre feita com Mihajlovic
O futebol chora a perda de uma lenda, mais ainda por se tratar de alguém novo que ainda muito acrescentava como treinador.
Alcançou a glória em Itália mas como filho da Jugoslávia, conhecedor do contexto difícil de uma guerra horrível nos Balcãs. As reações são muitas, terá um lugar eterno entre os maiores do Calcio. Sinisa Mihajlovic afirmou-se no futebol pelo que jogava, por uma carreira absolutamente triunfal em Itália, mas para absorver na plenitude a sua grandíssima história é preciso viajar à velha Jugoslávia, a um título impensável de campeão pelo Vojvodina, em 89/90, rompendo a supremacia de Estrela Vermelha, Partizan, Hajduk Split e Croácia de Zagreb.
Esse tremendo feito no clube de Novi Sad levou-o para o poderosíssimo Estrela Vermelha, seguindo de viagem com o treinador Ljubko Petrovic. A jogar como ponta-esquerda, Mihajlovic tornou-se num dos fenomenais craques dessa equipa, que seria campeã europeia em 90/91 com outros intemporais ilustres como Jugovic, Savicevic, Prosinecki ou Pancev, numa recordação tão bonita como pesada, pelo pesadelo que se abriu numa nação que se desmoronou com muito sangue derramado na crueldade da guerra.
Companheiro dessa memorável e épica caminhada foi Milic Jovanovic, antigo guarda-redes do Leça, ainda hoje ligado ao clube nortenho. «Faleceu-me um grande amigo. Estou muito triste», desabafou primeiramente.
Recuando ao início dos noventas, cada palavra de Jovanovic exalta um carinho imenso por Mihajlovic, um dos melhores amigos que guarda dessa equipa de notáveis, verdadeiros fora-de-série, tal como o croata Robert Prosinecki.
«Só tenho boas palavras sobre ele. Foi sempre um excelente colega e um grandíssimo profissional. A dedicação foi sempre a imagem de marca, lutava até à exaustão, era raçudo e nunca se dava por vencido», relata o antigo guarda-redes, suplente na final da Taça dos Campeões Europeus ganha pelo Estrela Vermelha, diante do Marselha.
«Eu cheguei ao Estrela Vermelha em julho de 1991, o Sinisa em dezembro de 1991. Eu vinha do interior da Sérvia, ele de uma cidade que hoje pertence à Croácia. Foi inevitável darmo-nos bem e andarmos juntos, as pessoas de Belgrado eram muito chiques para nós. Tivemos de nos safar por nossa conta. Assim fez a nossa amizade», contextualiza Jova.
«Controverso era também! Pode reagir de cabeça quente. Mas esse caráter deveu-se ao que aconteceu na terra natal. Ele jogava já no Vojvodina mas os pais ficaram sem nada quando a guerra entrou em Borovo e tiveram de fugir para Belgrado. Ele tinha uns 20 anos, esse acontecimento marca a personalidade de Sinisa, durante anos foi um homem revoltado e valeu uma grande ajuda do Estrela Vermelha», lembra Jovanovic, que chegou a Portugal para defender o Torreense, seguindo-se o Nacional, antes do amor pleno ao Leça.
Ensaios para o recorde do Calcio com Jovanovic
Muita da cumplicidade ganha com Mihajlovic derivou do recurso magnânimo do jogo do antigo craque da Roma, Sampdoria, Lazio e Inter: as bolas paradas. O defesa leva consigo numa tão triste despedida um recorde do Calcio: 28 remates certeiros na cobrança de livres.
«Será uma das maiores referências do futebol pelo pé esquerdo que tinha. Toda a gente tinha medo e receio! Não só dos livres diretos como dos cruzamentos. Ele dedicava-se imenso aos livres e uma boa razão da nossa amizade deve-se ao facto de ficarmos apenas os dois a treinar uma hora e meia esses lances depois do treino. Iam todos tomar banho e era eu que ficava a tentar defender os remates dele», rebobina Jovanovic, aceitando precisar, levado pela nostalgia e pesar, os diálogos de então.
«Acabava o treino, ele virava-se para mim e dizia ‘Micko’ vamos treinar os nossos livres. Eu alinhava sempre e aquilo passava sempre de uma hora. Ele levava a melhor na maior parte mas também fiz alguns milagres. Mas ele batia de uma maneira realmente incrível! O guarda-redes pensava que a bola ia para fora, mas quando dava fé a bola estava lá dentro», recorda Jovanovic, lembrando encontros com o mítico defesa/médio do Calcio, que deixou como última imagem um trabalho no Bolonha, interrompido por conta dos severos cuidados com o escalar da leucemia.
Venceu a doença, duas vezes, fiquei tão aliviado…mas esta terceira…
«Sempre que veio jogar a Portugal, estivemos largas horas à conversa no hotel, aconteceu com o Inter e com a Lazio quando vieram defrontar o FC Porto. Também falamos quando ele era para treinar o Sporting», evidencia Jovanovic, chorando a morte de um amigo, de um amigo que se elevou a figura mundial. Mas sempre um amigo.
«Quando soube da doença tive muita fé e esperança que ele iria ganhar mais esta guerra. Sabia que sendo Sinisa, ele nunca desistiria. E assim foi. Ele conseguiu derrotar a doença por duas vezes. Fiquei tão feliz e aliviado. Mas esta terceira vez matou-o. É demasiado triste», reconhece.