José Gomes Mendes: «Temos de puxar pelos outros, sem fragilizar os maiores...»
José Gomes Mendes, 63 anos, antigo membro do Governo de António Costa e presidente cessante da Mesa da Assembleia Geral da Liga de Clubes, é candidato à sucessão de Pedro Proença, lugar que disputa com Reinaldo Teixeira. Favorável a consensos alargados, acredita ter na equipa que o acompanha um trunfo importante...
O que o levou a avançar com a candidatura?
Em primeiro lugar, houve uma motivação pessoal, que é a paixão pelo desporto, e neste caso pelo futebol profissional, onde estou envolvido já há bastantes anos. Depois, existiu uma motivação circunstancial, que tem a ver com o facto de entender que hoje, o futebol português, fruto das suas próprias circunstâncias, mas também dos desafios europeus que enfrentamos, está num momento charneira. Quer isto dizer que entendo que se tivermos o projeto errado e tomarmos as decisões erradas, agora, corremos o risco de ser uma Liga absolutamente periférica. Se tomarmos as decisões certas, e para isso fizemos o nosso diagnóstico, podemos fazer regressar a Liga portuguesa àquilo que eu entendo ser o seu lugar natural, que é estar a olhar para as cinco de cima ,e não a olhar para trás.
Está a dizer que estamos num momento charneira, e estamos, de facto, porque já não estamos a olhar para os Big Five, já estamos a olhar para os Países Baixos, que já nos ultrapassaram folgadamente, sendo que a Bélgica, que nesta época ficou um bocadinho mais longe, nos últimos dois ficou bem mais perto, e os próximos dois vão ser dramáticos, porque vão ser retirados à contagem dos cinco últimos, que valem para a aferição do ranking, e nesses anos ganhamos à Bélgica 4.3 pontos. Bastará aos belgas, nos próximos dois anos, manterem a paridade connosco para estarem em cima de nós, ou, mesmo, ultrapassarem-nos...
Mas também, neste ano, recuperámos face aos Países Baixos.
Residualmente e ainda estamos muito longe. Realmente, como disse, este é um momento charneira...
E por que razão Portugal desceu do ranking? Por causa da Liga Conferência, onde compete a classe média, das Ligas da UEFA, e a minha tese é que temos que fortalecer a nossa classe média, que é praticamente inexistente. E devemos fazê-lo sem fragilizar os clubes de topo, porque convém não esquecer, que a principal fonte de receita da nossa Liga são as receitas das competições europeias, e não podemos avariar a locomotiva do nosso futebol. O dinheiro que vem das competições europeias não é só para os clubes que nelas participam, é para o ecossistema todo, vai até à II Liga.
Mas como é que nós vamos fortalecer os clubes de classe média se as infraestruturas que eles têm são más, e se muitas vezes a proporção do que recebem pelos direitos de televisão, comparada com os clubes grandes é de 1 para 15, enquanto que em Inglaterra, por exemplo, é de menos de 1 para 2?
Diz muito bem, se as infraestruturas são deficientes, e isso é factual, temos que investir nas infraestruturas e eu não me deixo paralisar por problemas que deteto. As atuais infraestruturas afastam pessoas, pioram o produto audiovisual, logo temos de ter um plano para isso.
AMPLIAÇÃO DAS RECEITAS
Mas como é que deixamos de ser, nesse capítulo, terceiromundistas?
Há um tema que gosto de designar por ampliação da base de receitas, que inclui a centralização dos direitos audiovisuais. Diz bem, quando afirma que é de 15 o ratio entre o que recebem os três clubes de topo e a mediana da nossa Liga e em Inglaterra é perto de dois, sendo que o padrão é de 3,5. É por isso que vamos fazer a centralização. Mas temos que fazer crescer o valor do nosso produto, e atuar sobre essas variáveis.
Confesso o meu ceticismo. No que diz respeito à centralização, em relação aos ingleses levamos 25 anos de atraso, em relação à média europeia, levamos, pelo menos, 10 a 15. Temos uma I Liga em que o panorama das assistências, tirando os três grandes, é verdadeiramente assustador: 9 clubes com assistências médias abaixo dos 3 mil espetadores, vários clubes com assistências que não chegam aos 2 mil, o Casa Pia anda nos mil e poucos, e tivemos 3 jogos na I Liga, que queremos internacionalizar, abaixo dos 800 espectadores. Como é que se dá a volta a isto?
Vamos ver. De facto, nós estamos atrasados na centralização, mas se há coisa que sei, é que já não consigo reescrever a história. Portanto, só tenho de olhar para a frente. Temos alguns défices substanciais, como referiu, por exemplo, em assistências. O que acontece é que, de facto, temos condições de contexto que não atraem pessoas. A experiência do adepto e as condições para a valorização audiovisual do produto, não podem ser boas quando a infraestrutura é má. E isto não se muda de hoje para amanhã.
Não conheço nenhuma realidade parecida, sequer, com a nossa em que três clubes têm, e eu vou já fazer contas por baixo, 90% dos adeptos. Vamos a Espanha, o Barcelona e o Real Madrid são gigantes, mas em Sevilha são do Betis e do Sevilla, em Saragoça são do Saragoça, em Bilbau são do Bilbau, e a nossa realidade, Guimarães à parte, que tem sido quase uma aldeia gaulesa onde não têm entrado outras influências- Braga começa agora a criar essa dinâmica - é normal irmos aos estádios onde jogam fora Benfica, Sporting, ou FC Porto e, maioritariamente, temos adeptos desses clubes.
É o que temos, não é? Então é sobre isso que temos de trabalhar. Não posso desenvolver um plano estratégico para uma realidade que não tenho. O que referi há pouco, de não termos classe média, é o cerne da questão.
O Vitória SC subiu um bocadinho, mas a Liga continua nivelada por baixo...
É verdade, temos algumas dificuldades, e creio que a nossa participação na Liga de Conferência é um barómetro muito importante. Mas nossas pontuações, quer na Champions, quer na Liga Europa, quando comparamos com os Países Baixos ou a Bélgica, são muito superiores...
Mas isso deve-se à macrocefalia do nosso futebol...
É justamente por isso que o projeto tem de ser puxar pelos outros, sem fragilizar os maiores.
E isso não é quadratura do círculo?
Não sei se é quadratura do círculo, é trabalhar com uma realidade que existe, Portugal é Portugal. Mas seremos capazes de fazer subir essa curva? Eu acho que sim. Por exemplo, quando, falamos da base de receitas, além da questão da centralização que é importante, há custos de contexto que nos prejudicam face a realidades internacionais. O exemplo do IVA é muito claro. Como é que é possível que o IVA não compare com o dos outros espetáculos?
INTERLOCUÇÃO POLÍTICA
Há margem de manobra para falar com a classe política? É que nem Governos do PS ou do PSD têm mostrado qualquer abertura para alterar os regimes fiscais vigentes, que os clubes consideram altamente penalizadores. O que é que lhe parece?
Devemos ser capazes de trabalhar para além da tutela apenas do Desporto. Somos uma indústria, um setor económico e como agentes económicos nós temos de falar com o Ministério da Economia e com o Ministério das Finanças, diretamente. Bom, eu aí, sem qualquer vaidade, com a experiência política que tenho, já o fiz com muitos setores.
Então sabe da dificuldade de falar com o Ministério das Finanças...
Sei, mas sei como é que se faz. E também sei que o futebol tem muito poder, como atividade é absolutamente transversal, socialmente. Portanto, não podemos ser ignorados, temos um caderno reivindicativo que, deve ser trabalhado numa base de razoabilidade.
No momento da verificação das contas, a Liga não tende a suavizar as coisas, e não penalizar os clubes, mesmo os incumpridores?
Não sou capaz de responder com detalhe a essa questão, porque não tenho a informação toda. Mas deixe-me dizer-lhe o seguinte: paulatinamente, a Liga tem transposto para os nossos manuais de licenciamento, algumas das regras da UEFA. Se tivermos uma regra muito musculada, e se a aplicarmos, como um cutelo num determinado momento, qual seria o objetivo? Queremos trazer as sociedades desportivas para o lado do cumprimento, ou cortá-las?
Quando alguns não cumprem, e não são penalizados, são penalizados os que cumprem...
É preciso manter a justiça da competição, trazendo as sociedades desportivas para o processo, e ajudá-las naquilo que é preciso, mais do que eliminá-las. Mas, diz bem, é preciso manter um terreno de jogo plano para as diferentes sociedades.
CONTAS AOS VOTOS
O universo eleitoral nestas eleições é muito reduzido, quem tiver 27 votos ganha [os clubes da I Liga têm dois votos (36), e os da II Liga, onde não entram as equipas ‘B’, têm um voto (16), o que dá um total de 52 votos]. Qual é a sua sensibilidade em relação ao sucesso da lista que encabeça?
Nós fazemos uma atualização frequente, as eleições são dentro de poucos dias, e pela nossa última avaliação, estou em crer que já temos a maioria dos clubes alinhados com o nosso projeto. Passo a explicar: este processo eleitoral teve as suas vicissitudes, durante meses houve um candidato único no terreno. Nesse contexto de candidato único, as sociedades desportivas fizeram aquilo que deviam fazer, ou seja, mostraram alguma simpatia, porque não podia haver um vazio de poder. Porém, as circunstâncias alteraram-se quando apareceu a nossa candidatura, com outra equipa e outro projeto.
Sente-se bem acompanhado?
Estou muito satisfeito, de facto. Defini as prioridades e, depois fui buscar a equipa. Por exemplo, no caso dos direitos televisivos, vamos trazer o Pedro Mendonça, uma pessoa que foi senior partner da McKinsey durante 30 anos, com experiência internacional, que cumpriu ali o seu ciclo, e está disponível para vir para a Liga. No âmbito desportivo, o currículo do José Couceiro, que foi entre outras coisas, administrador, diretor desportivo, treinador, presidente do Sindicato dos Jogadores, vice-presidente da FPF e Diretor-Técnico Nacional durante sete anos, diz tudo.
O José Couceiro mudou os quadros competitivos na FPF, e mudou-os para melhor, para muito melhor.
Nós queremos mudar para melhor.
Mas mudou-os também através da redução...
Vamos ver. Há casos e casos. Não posso comparar o futebol amador com o futebol profissional. Com esta lógica, defini prioridades, e rodei-me de quem conhece o fenómeno do futebol.
PORTUGAL E O FUTEBOL
A I Liga portuguesa reflete o País? Olhamos para os 18 clubes, 11 estão junto ao mar, 6 estão a menos de 30 quilómetros do mar e o que está mais longe do mar, o Arouca, está a cerca de 50 quilómetros...
Portugal, como sabe, tem o seu arranjo territorial, e o futebol é quase uma emanação das pessoas, é por isso que é tão transversal. Mas até mesmo do ponto de vista da força económica, acho natural que a distribuição geográfica da I Liga mimetize aquilo que é distribuição da população e da economia.
Concorda com o presente quadro competitivo? 18 clubes, 34 jornadas?
Essa questão é muito bem colocada e é um tema sensível. Não podemos ter ideias pré-definidas, porque no fim são os clubes a decidir. Mas posso adiantar que o meu ponto de partida não é reduzir o número de clubes, nem é esse o meu ponto de chegada, e a haver redução teria de ser sempre na base de um consenso alargado.
Três jogos da I Liga com menos de 800 espectadores não significa alguma coisa?
Pois, mas é preciso perceber que se eu cortar esse clube, esses 800 ou esses mil, não vão para outro clube, e isto aqui não é algo de soma nula. Não é claro para mim que reduzir o número de clubes seja a solução milagrosa para tudo. Há muito por onde trabalhar para criar jogos mais interessantes.
REDUÇÃO DE CLUBES
Mas reduzindo o número de clubes e o modelo, não iríamos ter um campeonato mais forte, não iríamos fortalecer a classe média, e não obteríamos o efeito que está a ter na Bélgica?
Para mim isso não é claro.
Sei que um candidato dizer que vai reduzir o número de clubes é um hara-kiri...
Mas eu digo isto com convicção, porque se nós queremos vender os direitos audiovisuais, vender o nosso campeonato nacional e internacionalmente, vamos reduzir o número de jogos?
Mas um campeonato com 12 equipas e que tenha um play-off 6-6, em vez de ter 34 jornadas, tem 32, o que hoje em dia até seria muito bem-vindo.
Mas também pode ser com 18 ou com 16. Mas então estamos a falar do formato, e as pessoas confundem o formato com o quadro. Tudo isto é passível de discussão, mas tem de haver um entendimento alargado, porque serão os clubes a decidir.
Os grandes e os pequenos só olham para o seu umbigo e para o seu interesse...
Mas a Liga é dos clubes que têm um pensamento com o qual eu posso concordar ou discordar, e não estou a dizer que discorde; o que não posso fazer é armar-me em inteligente e dizer-lhes 'isto vai ser assim porque vocês não sabem o que querem'. Não funciona assim, de todo, e devemos ter a humildade que nos leve a procurar consensos alargados. É nossa obrigação disponibilizar informação, comparações, cenários, para se poder decidir melhor. Mas, como digo, não temos necessariamente que reduzir o número de jogos, porque acho que isso vende menos.
Mas não tem a noção que os clubes não dão prioridade à indústria do futebol, e esse tem sido um problema para nós, relativamente aos outros?
Sou mais otimista quanto a isso. Os clubes tendem a defender os seus próprios interesses, o que é natural. Mas isso já sucedeu mais no passado, e como presidente da AG tenho uma posição privilegiada como observador.
CENTRALIZAÇÃO
Acredita que até 2028 haverá centralização, sendo que há clubes que já disseram publicamente que não aceitam nenhum formato em que recebam menos de um euro do que recebem agora?
Uma coisa é haver centralização, outra é qual será o modelo. No que depender de mim, vai acontecer. Temos o modelo definido até 2026, e teremos a implementação a partir de 2028. E digo que vai acontecer porque está na lei, e porque é bom para todos. Agora, há dificuldades, e é preciso encontrar terreno de negociação, pois alguns clubes defendem a sua dama. É esse o papel deles, não é? Temos que encontrar forma de valorizar mais o produto, para satisfazer as diferentes vontades, e para libertar dinheiro para a tal classe média que referi no início.
Pois, mas como é que concretiza isso? E depois, como é que devemos acreditar, como nos foi dito, que as receitas serão muito maiores a partir do momento em que a venda é centralizada?
Vamos ver, eu não falo pelo mercado, e o que existe é uma expectativa. Gosto de olhar para os processos internacionais: a Espanha passou por isto, os clubes maiores também não queriam, e o Real Decreto 5 de 2015, já com a chave de distribuição, estabeleceu as regras. Os nossos números não são os da Liga espanhola, mas o percurso metodológico para lá chegar é perfeitamente paralelo.
E o que é que podemos fazer?
É preciso desenhar uma trajetória de valorização do produto.
PARCEIRO ESTRATÉGICO
E isso é feito como?
Tem algum risco comercial, é preciso meter investimento à cabeça. Então, para tomar esse risco, é preciso trazer um parceiro estratégico, como a Espanha fez com a MediaPro, e se o produto evoluir, é preciso explorá-lo melhor, ao nível da produção, ao nível da distribuição e da inovação. A Liga espanhola, em 2014, quase não tinha receitas internacionais. O primeiro valor que atraíram foram 300 milhões. Sabe quanto é que vale hoje, com a internacionalização? 744 milhões!
Mas na Liga Espanhola jogavam, nessa altura, o Cristiano Ronaldo e o Lionel Messi...
Não estou a comparar os valores, o que eu estou a dizer é que o produto foi trabalhado.
O produto foi trabalhado porque havia matéria-prima para trabalhar...
Mas nós temos de trabalhar com a nossa matéria-prima. Temos o nosso valor, o futebol português não é um futebol qualquer.
Em Itália e em França, que fazem parte dos Big Five, têm surgido dificuldades importantes em relação aos patrocinadores e à eventual de redução de receitas...
A tendência europeia tem sido alguma desaceleração dos direitos, mas tem havido uma aceleração das receitas comerciais. Portanto, há aqui vasos comunicantes.
Eu não quero fazer o papel de advogado do Diabo, mas tenho muitas dúvidas em relação a esse processo...
Temos que ir à luta, temos de valorizar mais o produto, temos de trazer um parceiro estratégico, que faça ‘streaming’, que crie conteúdos pouco explorados em Portugal. É esse impulso estratégico que nós queremos dar. É esse o projeto que trago, apoiado numa equipa de classe mundial.
Mas, sobre centralização e modelo competitivo, que são prioritários, quando chegarmos a 2028, provavelmente já estamos a assistir a um novo formato das competições europeias, e já apareceram, entretanto, por via tecnológica, uma série de outros meios de difusão. E nós vamos continuar aqui...
Mas é por isso que nós trazemos, quem sabe sobre o assunto, trazemos os melhores, aqueles que estão a par dessas tendências.
Disse e eu não posso concordar mais, que tomar decisões com base numa lógica geográfica não fazia sentido nenhum. Ainda mais num País em que de Lisboa ao Porto distam 300 km. Teve algum significado aqueles que estiveram, ou não estiveram, na sua apresentação?
Assim de memória, estiveram sociedades desportivas do País todo.