História do futebol feminino na mesma sala...e no mesmo livro
Seleção Nacional feminina, que prepara encontros decisivos frente à Chéquia, apadrinhou em bloco o lançamento de um livro sobre a história do futebol das mulheres em Portugal
Ao final da manhã desta segunda-feira, a história do futebol feminino cruzou-se no auditório n.º1 da Cidade do Futebol, no âmbito da apresentação do livro História do Futebol Feminino, da autoria de Mary Caiado. Na mesma sala, repleta, encontrava-se toda a comitiva da Seleção Nacional feminina e também treinadores/as e dirigentes ligados aos mais diversos clubes do panorama feminino nacional, num clima de homenagem a toda a história do futebol praticado por mulheres em Portugal.
A obra descreve, de forma pormenorizada, toda a história do futebol feminino português desde os seus primórdios, no decorrer dos anos 70, até à atualidade, numa apresentação que durou cerca de uma hora e com o principal destaque a residir na intervenção de duas jogadoras da seleção nacional. Patrícia Morais foi a primeira, dirigindo duas questões à autora da obra, questionando-a sobre a probabilidade de, dentro de vinte anos, se justificar o lançamento de uma segunda edição.
A resposta de Mary Caiado foi a mais otimista possível: «Não o estou a dizer por ser de cor ou por estar aqui a nossa estimada seleção, mas acho que escreveria que Portugal chegou ao Mundial e venceu-o. Ouvi esta expressão muita vez: a jogadora portuguesa tem muita qualidade, desde o início. Desde os tempos da Alfredina Silva e da Adelaide Almeida, passando pela Maria João Xavier, até chegarmos aqui. E não o dizemos só cá: a Jillian Ellis, ex-selecionadora dos EUA, também o disse, elogia-a muito. E daqui a 20 anos era isso que eu escrevia, certamente: que seríamos campeãs do Mundo, facilmente», declarou a jornalista e autora.
Também questionada pela guarda-redes se iria ao Estádio do Dragão apoiar Portugal, Mary Caiado respondeu que tudo iria fazer para lá estar. «Não sei se consigo ir ao Dragão por motivos profissionais, mas estou ainda a tentar arranjar logística para conseguir ir», prometeu, recordando depois a sua ligação, de há muitos anos, ao desporto antes de ser parabenizada por Jéssica Silva, que chamou as antigas jogadoras ao diálogo.
Kika «à Maradona» e a sua ‘mestre’ Adelaide
A apresentação da obra História do Futebol Feminino teve a particularidade de possibilitar o reencontro da atual coqueluche do futebol feminino português, Kika Nazareth, com a mentora, Adelaide Almeida, que a descobriu para o futebol quando esta tinha apenas 13 anos. E conta a história: «conheci a Francisca com 13 anos. Trabalho na formação do Futebol Benfica e fazemos torneios nas escolas, com os miúdos», explica.
Num dia que parecia normal, de torneio de infantis como tantos outros, Adelaide encontrou alguém muito especial. «A Francisca estava na escola Delfim Santos e, nesse torneio, há dez anos, com jogos mistos, aparecem dois miúdos para lhe tirarem a bola e ela, à Maradona – chamo-lhe Maradona – saca da bola, passa por cima deles e segue. Nós naquela altura tínhamos sub-19, estávamos a criar sub-19, e ela ainda era uma menina», relata a antiga internacional portuguesa, que sublinha o quanto ficou impressionada com o que viu.
«Falei com uma colega e disse-lhe: vamos tentar que a Francisca venha para o futebol, na altura era futebol de sete, porque ela vai fazer tudo o que ela quiser da vida, como acabou por fazer agora», constatou, aludindo à sua recente transferência para o poderoso Barcelona. Hoje a brilhar no Barça, Kika não esquece quem a descobriu e a motivou a levar o futebol mais a sério.
«A Mary começou a palestra a agradecer à Adelaide, foi o primeiro nome que referiu na palestra, e eu se escrevesse um livro - que acho que não vai acontecer… - mas se o fizesse, o primeiro nome, e falo do futebol, não do futsal, acho que o primeiro nome a aparecer seria o da Adelaide. É giro reencontrarmo-nos aqui, dez anos depois, com histórias para ouvir, para contar, e agradeço-lhe publicamente», reconheceu, perante a sua mestre.
«Estou, hoje em dia, onde estou, e falo como jogadora, individualmente, muito por causa da Adelaide. Pego nas palavras da Adelaide e, primeiro, nas da Mary e agradeço pela obra e a história contada, porque acho que acabo por ser, até ao momento, o final desta corda e desta história gigante. Eu podia ser a última pessoa a contar a história e é giro perceber que há toda uma história por trás, há nomes por trás», constata, com humildade.
Perante várias dezenas de jogadoras, ex-jogadoras e históricas pioneiras do futebol feminino nacional, Kika não tem dúvidas: «Não sou só eu, não é só a Dolores, não são só as Navegadoras…são estas pessoas. Acho que é bom para nós nos apercebermos que o facto de estarmos aqui, de vivermos com esta facilidade – ainda que haja dificuldades, vivemos com muito mais facilidade – deve-se a estas jogadoras, e sobretudo a estas pessoas», indicou, grata pelo passado que permitiu que a sua geração dispusesse das atuais oportunidades de carreira e condições de desenvolvimento, que já se traduziram numa presença numa fase final de um Mundial e em dois Europeus, podendo obter o apuramento para uma terceira edição já esta terça-feira, caso Portugal ultrapasse a Chéquia no derradeiro play-off de apuramento.
«Acredito que hajam muitos desafios e estou emocionada porque durante o meu caminho…falaram aqui de convocatórias por fax e, quando jogava no Ferreirense, ainda recebi um fax com a minha chamada à seleção sub19 (risos). Se estamos aqui, nós somos as sonhadoras, efetivámos o vosso sonho também e gostava de saber qual o vosso sentimento», dirigindo-se a históricas como Maria João Xavier, Edite Fernandes e Carla Couto, que apelidou de «a nossa inspiração».
«Havia uma lacuna enorme no futebol feminino, que é uma jogadora com 15, 16 anos, não saber que há uma história. Que havia jogadoras que tanto deram, tanto lutaram, tanto mentiram às suas famílias, fugiram de casa…as pessoas não sabiam que o futebol feminino em Portugal tinha uma história muito bonita, que foi vivida por grandes mulheres que fizeram grandes sacrifícios e como estas fazem, em moldes diferentes. Eu fui uma privilegiada, porque o meu pai obrigava-me a jogar», conta Carla Couto.
Tantas vezes parceira de Carla no ataque de Portugal, Edite Fernandes manifestou o seu orgulho e emoção. «Sou testemunha do tempo que, não digo que perdemos porque nunca é uma perda de tempo, mas foram muitas horas a contar histórias… chegar ao fim deste trabalho maravilhoso, orgulha-me. E orgulha-me olhar para o lado e ver estas Navegadoras, todas vamos apoiar e, se Deus quiser, estaremos pela terceira vez consecutiva num campeonato da Europa, a viverem os nossos sonhos», declarou.
Pertencente a uma geração anterior à destas duas internacionais, Alfredina Silva também deixou o seu contributo. «Emociona-me sempre falar de futebol feminino porque estou nele desde os onze anos, atravessei muitas dificuldades e vivi sempre para o futebol com muita paixão. Ter a oportunidade de ver a Federação permitir que haja uma História do Futebol Feminino, lembrar muitas mulheres e muitas raparigas que tiveram de vencer muitos estereótipos é um orgulho», acrescentou.
Contemporânea de geração e uma das pioneiras do futebol feminino português, Adelaide Almeida «joguei durante 16 anos, fiz parte da primeira Seleção Nacional de futebol feminino, organizada para o primeiro Europeu. Dizia muitas vezes: não vou desistir, vou continuar a trabalhar no futebol feminino, que é essa a minha grande paixão, ver crescer as meninas que com cinco, seis anos, dizia sempre que era nas escolas que tinham de começar e estou ainda mais feliz, porque hoje tudo está organizado, com as escolas a trabalhar», transmitiu a antiga jogadora.