Geórgia: a história polémica por trás da equipa-sensação do Euro 2024
Jogadores da Geórgia celebram vitória sobre Portugal (IMAGO)

Geórgia: a história polémica por trás da equipa-sensação do Euro 2024

INTERNACIONAL30.06.202407:15

Muito mais do que só o futebol, a seleção da Geórgia representa a luta contra um perigo iminente. No dia em que fará, de novo, história no Europeu, A BOLA falou com um jornalista georgiano para compreender o período de turbulência que o país atravessa

A vitória da Geórgia sobre Portugal no Euro 2024 foi o dia mais glorioso da história desta Seleção. A participar no seu primeiro grande torneio de seleções, a equipa de Kvaratskhelia não só ultrapassou a fase de grupos, mas fê-lo contra uma das principais equipas do torneio e frente ao ídolo do avançado do Nápoles, Cristiano Ronaldo.

Por isso, a data de 26 de junho de 2024 estará para sempre tatuada na memória dos adeptos de futebol de um território que tem pouco menos de 4 milhões de habitantes. Não só pelo sucesso desportivo, mas, acima de tudo, por ser uma prova de resistência de um país que tem regiões ocupadas pela Rússia, um governo que vai demostrando simpatia para com Vladimir Putin e que tem num ex-jogador do Milan uma das principais caras.

Protestos, confrontos e a Lei Russa

A estreia do pequeno país no extremo oriental europeu num Campeonato da Europa, foi ofuscada enquanto o país ainda reagia à aprovação da chamada Lei dos Agentes Estrangeiros, por parte do Governo local.

Durante semanas, foram realizados vários protestos contra esta (então) proposta, que conheceram, por vezes, fortes retaliações da polícia. A lei é associada a uma semelhante que a Rússia aprovou em 2012 – e que, por isso, foi apelidada de Lei Russa. Por isso, o país recebeu avisos dos Estados Unidos e da União Europeia de que esta lei, a ser aprovada, prejudicaria a aproximação rumo à integração no Atlântico Norte, nomeadamente à possível entrada na NATO e na União Europeia (EU).

No entanto, o governo liderado pelo partido Sonho Georgiano aprovou a lei, que foi vetada pela presidente pró-EU, Salome Zurabishvili, mas o parlamento acabou por promulgá-la uma segunda vez, implementando-a desse modo.

«Claro que o partido vai aproveitar este sucesso desportivo, por questões políticas. O presidente da Federação [Levan Kobiashvili, também ex-internacional georgiano] é membro do parlamento e é fácil dizer que "o nosso governo conseguiu tanto sucesso". Mas o povo da Geórgia sabe que cada passo bem-sucedido da equipa nacional, é do mérito da equipa.» As palavras são ditas por Giorgi Mosashvili a A BOLA, jornalista do portal local lelo.ge e colaborador da UEFA.

Protestos violentos na Geórgia (IMAGO)

Mas o que implica esta Lei Russa?

Agora, a Geórgia exige que os meios de comunicação social que recebam pelo menos 20% do seu financiamento do estrangeiro, se submetam a uma supervisão governamental, que pode incluir sanções penais ainda não definidas. Esta lei também fez recordar uma disputa que Geórgia e Rússia já têm desde 2008, quando a segunda invadiu os territórios georgianos de Abkhazia e Ossetia do Sul, fomentando e suportando movimentos separatistas que aí surgiram.

Após a sua aprovação, alguns protestantes queimaram a bandeira da Rússia e do Sonho Georgiano.

A posição dos jogadores contra um ex-Milan

Apesar do Sonho Georgiano procurar popularidade nos sucessos futebolísticos, os heróis deste país que estão no Campeonato da Europa são contra as políticas do partido, como explica Mosashvili.

«Kvaratskhelia, Mamardashvili e outros jogadores sempre disseram que o caminho da Geórgia é a aproximação à Europa, mas os jogadores nunca interferiram diretamente na política. O partido no poder também está a dizer que a Geórgia está na Europa, mas isso é apenas política...»

E instrumental para o sucesso dessa política é Kakha Kaladze, ex-jogadore que ganhou a Liga dos Campeões por duas vezes com o Milan.

Kaladze levantando a taça da Liga dos Campeões em 2007 com Cafu, e Kaká (IMAGO)

Kaladze já foi primeiro-ministro georgiano e agora é o Presidente da Câmara da capital Tiblíssi. «Ele é uma pessoa muito importante para o Sonho Georgiano. Foi um grande jogador, líder e agora é uma autoridade na cidade e no partido», explica Mosashvili.

Prémio milionário de um oligarca pró-Putin

Foi notícia após o jogo com Portugal: a equipa da Geórgia recebeu 10 milhões de euros pela passagem aos oitavos de final. No entanto, esse prémio não passou de «uma jogada inteligente» por parte do alegado benfeitor, segundo Mosashvili.

Quem ofereceu o dinheiro foi o oligarca Bidzina Ivanishvili, fundador do partido Sonho Georgiano, ex-primeiro-ministro do país, mas que, segundo diversas fontes, é o homem mais influente do país e simpatizante de Vladimir Putin. Além disso, é também a pessoa mais rica do país – segundo a Forbes, a sua fortuna de 5,5 mil milhões de euros representa cerca de 20 % do PIB da Geórgia.

«Esse prémio é uma grande motivação para os jogadores e uma jogada inteligente de Ivanishvili», explica Mosashvili. «Talvez ele pense que uma intenção como esta será uma "arma" poderosa para conquistar o coração do povo da Geórgia, porque a equipa nacional significa muito para os cidadãos e o futebol é tudo para nós.»

Bidzina Ivanishvili numa rara aparição pública em 2023 (IMAGO)

O multimilionário prometeu ainda oferecer mais 10 milhões de euros se a Gérogia vencer, este domingo, a Espanha. Mas Mosashvili avisa das intenções por trás dessa promessa: «Espero que ele não possa comprar tudo e, o que é mais importante, é que os nossos jogadores são muito livres e amam o seu próprio país e dirão sempre palavras corajosas para o futuro deste país.»

Assim, quando o apito inicial for dado às 20.00 horas, em Colónia, a Geórgia estará a lutar por muita coisa. Em campo, por fazer história e por ganhar um novo prémio milionário. Em casa, muitos georgianos verão uma luta pelo sucesso de quem se recusa a ficar calado e deseja um futuro de união, em vez de adesão a outro país.