Começou como treinador principal no Brasil mas viu-se obrigado a treinar em Portugal, no Benfica B, para ter acesso ao grau máximo de qualificação para treinadores: UEFA Pro. Não esquece os muitos jogadores que treinou e que hoje são figuras maiores do futebol português
Olhando para aqueles jogadores que foram teus, nos seis meses de Benfica B, como é que vês o que eles estão a fazer hoje?
Orgulho-me muito do percurso deles e da resiliência deles. Não é fácil chegar ao patamar a que eles estão e numa equipa tão grande como o Benfica. Felizmente ao longo da minha curta carreira tenho uma relação fantástica com os jogadores. Quem pensar que ser treinador é apenas treinar, criar o exercício, consolidar comportamentos através da repetição e ir ao jogo, pode ir fazer outra coisa, que está na profissão errada. Um treinador é muito mais do que isso. Ele não vai ficar chateado comigo, mas dá-me um orgulho imenso o Tomás [Araújo]. Ele deu um passo, já o ultrapassou, pois bloqueava, mais em termos emocionais. Eu tive uma história com ele num jogo Vilafranquense-Benfica. A dupla de centrais nesse jogo foi Morato e Tomás. Ao intervalo nós estávamos a perder 1-0. Eu faço a minha intervenção ao intervalo e a seguir recolho ao meu balneário. Entretanto, chega o Tomás Araújo e pede-me, já com a lágrima no olho, que o tire do jogo porque só estava a fazer m… Eu disse que não o tirava porque, para mim, como treinador, essa seria a ação mais fácil. Tirava-o, mas ele ia continuar com o problema. Disse-lhe: ‘Tu vais para o jogo, vais jogar a segunda parte e vais resolver o teu problema e o problema da equipa. Vais jogar bem e vão dar a volta ao resultado.’ Então ele voltou, a equipa acabou por dar a volta ao resultado. Ganhou 2-1 e ele fez uma segunda parte fantástica. E, no final do jogo, a coisa que menos importava para mim era o resultado. Para mim o importante era que ele, percebesse que não era fugindo da situação que a ia resolver. Era enfrentando-a. Ele fez isso, e bem. Acho que foi muito importante para ele ter ido para o Gil, ganhar ainda mais maturidade, porque qualidade, ele tem muita e de sobra. É um jogador muito completo, rápido, que tem uma construção fabulosa. Acho que esse bloqueio que ele tinha, conseguiu ultrapassá-lo e tornou-se no jogador que é hoje. Orgulha-me muito o Tomás, que já chegou à Seleção Nacional, da mesma forma que me orgulha o António [Silva]. Lembro-me que o primeiro jogo que ele faz na equipa B foi em Mafra. Orgulha-me ver os passos que ele está a dar. O que quero que ele saiba é que não pode desistir nunca, porque o futebol e a vida dão-nos lições. A oportunidade dele vai surgir novamente e mais cedo ou mais tarde, os dois têm espaço como a futura dupla do futebol do Benfica.
No Benfica, ou achas que, por exemplo, no caso do António Silva, já está na hora de sair?
Eu não quero dar essa resposta politicamente correta. Acho que ele está a passar um momento. Eu não vejo alguém frágil, apesar de ter tido alguns momentos desafiantes. Mas, isso toda a gente passa. Ainda há pouco tempo colocavam em causa o jogador mais experiente do Benfica, o Otamendi. O futebol é o momento e eles têm de aproveitar esse momento, sabendo que a memória do ser humano é extremamente curta e rapidamente se esquece, se houver uma exibição positiva. Qualidade ele continua a ter, talento também. Acho que o Benfica tem gente competente que o pode ajudar, se é que existe alguma coisa para resolver, ou não, relativamente ao António e ao seu futuro.
Em relação ao Tomás, muito se tem falado nele esta temporada. Surpreende-te?
Nada. É a sequência lógica do trabalho desenvolvido por ele, há muitos anos. Mais uma vez digo, acho que foi importante para ele ter saído. Veio outro jogador. As competências técnicas e táticas estão lá, e sobre o ponto de vista emocional, acho que é um jogador muito mais equilibrado e mais estável. As exibições falam por si, mas acho que não é o tempo para o Tomás sair. É tempo do Tomás se afirmar cada vez mais dentro do Benfica.
O Tiago Gouveia, falavas dele também…
Um miúdo fantástico. Adoro o Tiago. É um jogador com um grande talento. Nós temos uma ótima relação, quase de pai para filho. Eu sempre lhe disse, e ele também não vai ficar chateado comigo, para não sair do Benfica. Muitos que saem depois já não voltam e eu acho que ele tem muito para oferecer ao Benfica e dentro do pouco tempo que lhe deram oportunidade ele demonstrou. Agora, infelizmente, ele teve as suas lesões, que também chegam a todos, mas sempre que teve oportunidade demonstrou, mesmo em períodos mais desafiantes do Benfica. Eu continuo a ver o Tiago como alguém que pode fazer uma carreira dentro do Benfica. Ele sabe as suas limitações, mas também sabe as suas valências. É um jogador extremamente inteligente, do qual eu falo com um carinho enorme e desejo-lhe tudo de bom. Eu sei que ele vai triunfar.
Desses jogadores que treinaste nessa única experiência que tiveste no futebol português, houve algum que achasses que chegaria à primeira equipa e que não chegou?
Houve. O Rafael Brito, por exemplo. Podia falar de outros, mas o Rafael acaba por sair depois para o Casa Pia. Eu pensava, num primeiro momento, que ele se ia afirmar, mas algumas lesões também o atrapalharam. Mas, ele ainda vai muito tempo. Às vezes posso tornar-me repetitivo, relativamente às características humanas de cada um deles, mas ele é mais um menino fantástico e foi por isso que eles formaram uma boa equipa. Acho que das equipas B que o Benfica já teve, aquela foi das melhores gerações. O próprio Henrique Araújo - já me ia esquecer dele -, o meu menino fantástico. O Duk, Luís Lopes, que não está a fazer carreira cá, mas é alguém que na Escócia consegue ter um plano de destaque. O Úmaro, o Henrique Pereira, o Martím Neto, que são jogadores que estão a sair, mas eu acho que eventualmente, um dia mais tarde, poderão regressar.
Essa tua experiência por cá foi curta e quando achavas que ias tranquilamente tirar o quarto nível e finalmente teres a graduação do UEFA Pro, o telefone tocou outra vez do lado lá do Atlântico e tu foste para o Cuiabá.
Em 2022 fui para o Cuiabá. Fiz o meu primeiro jogo à décima jornada, quando a equipa já estava numa zona desconfortável. O primeiro jogo, foi contra o Corinthians, e o Cuiabá ganhou. Foi um ano extremamente desafiante. O Cuiabá era o segundo ano que estava na Série A e competir contra equipas do eixo Rio-São Paulo, de Minas Gerais, de Belo Horizonte, de Porto Alegre, é extremamente difícil. Eu só percebi onde era Cuiabá quando estava agora em São Paulo. Porque Cuiabá é quase do outro lado do mundo. Até tem diferença horária relativamente a Brasília. Fica a 400 quilómetros da Bolívia. Fica no meio do mato, com extremo calor. Nós conseguimos o objetivo, que era a permanência com o Cuiabá e isso é um feito extraordinário. Muitas vezes nós olhamos só para quem ganha a Série A ou para quem ganha a Taça do Libertadores, mas as pessoas não sabem o trabalho que dá, e o troféu que é, permanecer com o Cuiabá. Está aqui a prova relativamente ao Cuiabá. Ficou em último lugar agora. Por isso, eu guardo, para mim, em 2022, um campeonato brasileiro, ganho pelo Cuiabá, que é a permanência, e em 2023, a Taça dos Libertadores. Porque levar o Cuiabá a fazer a melhor campanha da sua história, em 12º, e qualificar para a Sul-Americana, ficando à frente de Vasco da Gama, de Corinthians, de Bahia, com investimentos altíssimos, é um feito extraordinário.
E que aventura foi essa de treinar o Cuiabá e tirar o quarto nível de em Portugal?
Essa realmente é uma história extraordinária (Risos) Eu estava em casa e entre 29 de maio e 23 de junho estaria em Quiaios a fazer a formação específica do curso, em regime de internato, de segunda a sexta. Apenas estaríamos livres ao fim de semana. E o telefone tocou para os meus representantes e eles disseram-me: ‘Mister, o presidente ligou, quer que você vá e oferece X’. A minha mulher não queria muito que eu regressasse, eu fiquei a pensar e disse que não ia por ‘X’, pois queria ‘Z’. Eu chutei o ‘Z’ para ele dizer que não. Ele à primeira disse que não. Só que, entretanto, o Cuiabá jogou em casa com o Atlético Mineiro e perdeu 4-0. O presidente ligou para os meus representantes e disse dava o ‘Z’. Então eu tive de explicar que o problema não era dinheiro e eu até podia ficar mais barato. A situação era que de 29 de maio a 23 de junho eu não ia abdicar de fazer uma coisa que era determinante para o meu percurso enquanto treinador e que há muito perseguia. E ninguém treina à distância. Eu disse mesmo: ‘Alguém dá treino por Skype ou por videoconferência?’ Os meus representantes colocaram-me a falar com o presidente do Cuiabá para eu explicar isso. Ele parou de falar durante 30 segundos e diz-me: ‘Ok mister, você faça o seguinte, vem durante estes 15 dias, até o dia 29, e faz os dois jogos com o Cruzeiro e Curitiba. Prepara a equipa, e a seguir vai à sua vida e a sua equipa técnica fica cá a tratar do assunto’. Perante aquela conversa não tive como dizer que não. Então, eu fui. Joguei contra o Cruzeiro, até que ganhámos o 1-0, era ainda o Pepa o treinador, e empatámos 1-1 com o Curitiba. E eu vim para Portugal. Nesse tempo em que estava em Portugal a tirar o curso tivemos jogo contra o Goiás, o Corinthians, e o Botafogo, naquela altura treinado pelo Luís Castro. Então andei a fazer piscinas. Eu saía de Quiaios à sexta-feira, ia a casa, cumprimentava e despedia-me da minha família e ia para o aeroporto, porque há um avião para São Paulo às 23h45. Então, o primeiro jogo era ao domingo e quando chegou no sábado vou dar o treino ao CT do Atlético Goianiense, em Goiânia, e no dia seguinte à noite, jogámos contra o Goiás. Na segunda-feira fui de carro até Brasília e depois de Brasília para São Paulo, para voar para Lisboa. Cheguei e fui de carro para Quiaios e aí só cheguei na terça-feira. Fiquei lá até sexta e depois fiz a mesma coisa. Na sexta sai de Lisboa, cheguei a São Paulo no sábado de manhã, fui ter com a equipa, almocei, tivemos jogo de noite e voltei para Lisboa. Cheguei às seis da manhã, peguei no carro e às 8h30 da manhã já estava na aula em Quiaios. Eu acho que andei durante dois ou três meses a descansar daquela rotina. Estou extremamente grato é o presidente do Cuiabá, e ainda hoje temos uma ótima relação. Eu sei que ele ficou um bocadinho sem chão a partir do momento que eu saí. Nunca pensei na minha vida que o Corinthians ia ter cinco derrotas seguidas no estadual. Mas, o telefone tocou, e eu tinha o objetivo de chegar a um grande futebol brasileiro. E, quem vai dizer não ao Corinthians?
Como é que foi treinar esse gigante de nome Corinthians?
Um passo gigante. Mesmo estando um clube extremamente confuso sob o ponto de vista político, e bastante instável, com um presidente novo e poucos recursos. Mesmo assim eu acho que o milagre foi feito porque conseguimos manter o clube em todas as competições, mesmo em condições extremamente adversas. Naquela altura, quando existem situações em que não te pagam, ou que todos os dias há uma notícia que não é positiva relativamente ao clube, isso tem reflexos no dia-a-dia do clube e dos jogadores. Portanto, a liderança aí tem de se ajustar um bocadinho. Se já não recebem e há um constante alvoroço dentro do clube, e tu vais como treinador, cobrar ainda mais, podes ter um efeito contrário. Fomos perdendo vários jogadores e sobraram os meninos. Foi desafiante, mas foi extremamente positivo.
És o segundo treinador português com mais jogos no futebol brasileiro, 98, na Série A. Qual é o sentimento? Ainda precisas de ganhar?
Sou muito jovem, mas quero ganhar, é evidente, mas é preciso estar num clube estável, que nos dê os recursos necessários para podermos alcançar essas vitórias. O meu objetivo é lutar pelos primeiros lugares, mas ainda não tive uma equipe no Brasil que me desse essa possibilidade. Mas, eu quero lutar por competições. Quero estar em clubes que lutem pelas competições europeias, quero estar em clubes que lutem pelas competições sul-americanas.
Desejas que o próximo desafio que tenhas para treinar, seja de um clube que te vá permitir, em 2025, lutar para que também tu venças no Brasil?
O futebol para mim não se resume só ao Brasil, mas é evidente que tenho lá o meu mercado, pelos projetos que tenho abraçado serem no mercado brasileiro. Eu gosto muito, porque tem bons jogadores, estádios cheios, bons treinadores, boas equipas e um ambiente apaixonante. É desgastante, sobre o ponto de vista emocional, até pela densidade competitiva que existe, mas, ao mesmo tempo, é apaixonante e fascinante. Eu adoro aquilo. Eu nunca vou fechar a porta ao meu país, mas eu acho que ainda não é o momento de regressar, mas o futebol é imprevisível.
Precisas de ganhar lá fora para depois teres uma oportunidade à dimensão daquilo que és, cá dentro?
Sinto que sim. Sinto claramente que preciso ainda de fazer mais para depois abraçar algo que também faz parte dos meus sonhos.
Sonhas mais como treinador do que sonhavas enquanto eras jogador?
Hoje sim, porque a minha carreira como treinador divergiu para patamares que eu sou honesto, nunca sonhei. Nunca pensei que fosse possível. Como jogador percebi rapidamente que não ia chegar muito longe. Hoje até o meu próprio pai diz: ‘És muito melhor treinador do que aquilo que foste como jogador’. (Risos) Não era perna de pau, nem tinha dois pés esquerdos, mas…
Faltava-te um bocadinho mais de garra?
Faltava, e eu hoje sinto isso. É bom nós sermos honestos connosco próprios e até com os nossos filhos. E eu sou muito honesto e limpo com eles, porque a vida para mim nunca foi difícil. Nunca me faltou nada, mas também sei dar valor, os meus pais tiveram esse cuidado, e nunca me facilitaram. Se calhar, na busca de conquistas enquanto jogador, entrei em modo de facilitar e de não lutar tanto pelas coisas. Esperava sempre que as coisas viessem ter comigo, e isso é um mau princípio. Eu como treinador, estou extremamente à vontade, porque estou a um oceano de distância, e as coisas quase que foram acontecendo no anonimato, para o português em geral. Fui em busca das minhas coisas, e fui acreditando que era bom naquilo que fazia.
Tem feito carreira como treinador no Brasil. Começou como principal no Athletico Paranaense, depois de ter tido uma primeira experiência no futebol brasileiro como adjunto de Jesualdo Ferreira, no Santos. A única experiência em Portugal foi no Benfica B e em entrevista A BOLA elogia os jogadores que o marcaram por cá e a ligação quase umbilical do lado de lá do Atlântico.