A BOLA NO EURO 2024 Do ódio à afirmação regional: como o touro é encarado em Leipzig

INTERNACIONAL04.07.202409:00

A BOLA foi perceber como o projeto da Red Bull é visto na cidade; Clubes tradicionais mostram indiferença; «Os adeptos do Lok e do Chemi, muitos deles também são adeptos do RB Leipzig», diz Henrique Miguel Pereira

LEIPZIG - Da fama já ninguém o livra, mas a equipa de reportagem de A BOLA aproveitou os dias passados na oitava maior cidade alemã, a acompanhar o Euro-2024, para perceber se o rótulo tem fundo de verdade: será o RB Leipzig a equipa mais odiada da Alemanha?

Como em todos os casos em que há posições extremadas, a verdade fica algures pelo meio. Mesmo entre os clubes mais tradicionais da cidade, de alguma forma ultrapassados na relevância regional, há opiniões amplas: da resistência ao conceito de clube-empresa, alimentado pelos milhões da Red Bull, marca de bebidas energéticas, ao reconhecimento de que é preciso equilibrar a balança do futebol alemão, tombada para o lado ocidental.

«Na verdade, não fiquei muito surpreendida com a forma como resultou este projeto do RB Leipzig. Era claro, olhando para o mapa da Alemanha e para os clubes da Bundesliga, que havia uma enorme lacuna na Alemanha de Leste. Ainda existe, à volta de Leipzig. Era claro que seria um local certo para fazer algo assim», diz Jaana Braz, diretora de marketing e comunicação do Chemie, duas vezes campeão da RDA, em 1951 e 1964.

Jaana Braz, diretora de marketing e comunicação do Chemie Leipzig

«Claro que não encaixa, de todo, na nossa definição de futebol, no lado romântico do jogo. É algo que queres construir. Tornas-te adepto porque os teus pais e os teus avós iam a este clube, ou porque tinhas amigos que iam. Isso não é possível num clube como o RB Leipzig, pois tens de tomar tu a decisão. Vai existir um clube de sucesso e então é esse clube que eu escolho. Não funciona assim, na nossa perspetiva: o clube é que tem escolhe a ti», acrescenta.

Tão perto e tão longe

Jaana olha para o RB Leipzig como «um mundo diferente, mas também distante», ainda que não esteja a mais de cinco quilómetros. Admite que os jovens terão tendência para procurar o novo clube da cidade, seja para assistir aos jogos ou até para praticar futebol, mas descarta rivalidade: «Vivemos o futebol de outra forma e estamos bem com isso». Admite que «alguns adeptos mais velhos, que não estavam contentes com o futebol em Leipzig, queiram ver futebol de sucesso, desejem ter na cidade o Bayern de Munique». «Nós somos mais da família. Eu não quero saber se o jogo é com o ZFC Meuselwitz ou com o Lokomotive Leipzig. Venho para estar com os amigos e com a família. Essa é a nossa visão do futebol- Não me parece que seja assim tão relevante que alguém vá ver o Chemie ou o Lokomotive e depois vá também ao RB Leipzig. São mundos diferentes. Por vezes alguém pode querer ir ver um jogo da Liga dos Campeões com o Real Madrid, por exemplo, mas o coração de adepto está aqui.»

Hans Jerke, diretor de operações do Chemie, olha para o projeto RB como «uma grande sombra», numa perspetiva benéfica. «Dá-nos tempo para crescer de forma simples. Quando os nossos adeptos precisarem de um futebol de sucesso, podem ir ao RB Leipzig, e nós podemos crescer devagar, com segurança financeira», defende.

Símbolo de afirmação

Rival do Chemie no quarto escalão do futebol germânico, o Lokomotive tem posição idêntica relativamente ao RB Leipzig. Pelo menos na voz de Matthias Loffler, voluntário do clube e membro do Conselho de Supervisão. «Para mim é algo completamente diferente. Chamam-lhe futebol, mas é algo completamente diferente», adverte, logo à partida.

Matthias Loffler, voluntário do clube e membro do Conselho de Supervisão do Lokomotive Leipzig
O primeiro campeão alemão guarda saudades do Benfica

1 julho 2024, 09:30

O primeiro campeão alemão guarda saudades do Benfica

A BOLA visitou as instalações do histórico Lokomotive Leipzig, fundado em novembro de 1893. Venceu o campeonato alemão em 1903, ainda como VFB Leipzig. Foi ajudado por Lothar Matthaus, mas está agora na quarta divisão alemã.

«Tiveram de mudar o nome para ter RB no nome, pois não podiam ter Red Bull, mas quem estão a enganar? Para mim não há conflito, não é algo para mim, mas algumas pessoas vão lá e vão aos clubes aqui. Não têm problemas com isso. Não sei se há um ódio massivo. Não vejo isso, vejo mais pessoas como eu, que não querem saber, e que vão lá ver um jogo de tempos a tempos», acrescenta.

«Eu não os adoro, mas a minha forma de ver é outra. Não vou andar aqui com pinturas ou tarjas. Mas não olho para eles como um clube normal», acrescenta o dirigente do clube com mais tradição na cidade, o primeiro campeão alemão, que na década de 60 chegou a eliminar o Benfica das provas europeias. «Acho que é diferente se és um ultra, ou um adepto de um clube que os defronta. Se és adepto do Dortmund e jogas com eles, queres sempre o reforçar que tens um problema com esse sistema. Não gosto da palavra ódio, mas sim… não há muito amor por eles», resume Matthias.

Henrique Miguel Pereira é português, como o nome deixa adivinhar, mas vive em Leipzig há mais de uma década. Para além de professor e investigador na área da conservação da biodiversidade, joga também em campeonatos de veteranos por um modesto clube local, o Leipziger FC 07, e está por dentro da nova realidade futebolística local. Olha para o RB Leipzig como uma «solução interessante para ser competitivo com os clubes da Alemanha Ocidental».

Henrique Miguel Pereira, professor e investigador português, residente em Leipzig há mais de uma década

«Durante muitos anos a Bundesliga era o campeonato da Alemanha ocidental. Até aparecer o Leipzig. E como se compete com equipa que têm bom financiamento, boas estruturas? É muito difícil. A única forma foi uma companhia, a Red Bull, investir brutalmente. Tiveram de começar na quinta divisão, ao comprar a licença de um clube, e foram subindo. Agora estão na Liga dos Campeões, e a cidade gosta muito. Os adeptos do Lok e do Chemi, muitos deles também são adeptos do RB Leipzig», garante o português, que fala em «história de sucesso», apesar da reação de «parte da massa associativa da Alemanha, que diz que é um clube privado, no qual os sócios não mandam». «É um bocadinho reacionário falar mal do Leipzig», conclui.

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