«Carlos Queiroz é o meu melhor amigo, somos como duas peças de Lego que se encaixam»
Nelo Vingada falou com A BOLA sobre o papel da academia na formação e no sucesso de treinadores em Portugal. Recentemente esteve o com José Manuel Delgado e Vitor Serpa no programa ‘Conselho de Estádio’ da A Bola TV

CONSELHO DE ESTÁDIO «Carlos Queiroz é o meu melhor amigo, somos como duas peças de Lego que se encaixam»

NACIONAL16.04.202409:49

Nelo Vingada, 71 anos, um dos nomes mais importantes da evolução do futebol português, foi o convidado do ‘Conselho de Estádio’, onde lembrou experiências vividas nos onze países onde trabalhou. Num tom sempre sereno, que é a sua imagem de marca, deu ênfase à universalidade dos portugueses, que liga ao sucesso dos treinadores lusos no estrangeiro...

Vítor Serpa (VS) - Tendo percorrido tantos países, com tipos de jogo diferentes e, sobretudo, sociedades diferentes, qual foi a situação que encontrou, mais difícil de conciliar com o futebol profissional?

NELO VINGADA - Trabalhei em 11 países, Portugal incluído, mas tornei-me conhecido, especialmente através do futebol jovem de Seleções, embora eu e o Zé Manel Delgado tenhamos sido companheiros de lides no Belenenses, quando estive lá como treinador-adjunto, primeiro de Peres Bandeira, e depois de Jimmy Hagan [em 1980/81].

JOSÉ MANUEL DELGADO (JMD) - Pois, com Peres Bandeira o Nelo ainda se ocupava da preparação física, mas com Hagan era o inglês que tratava de tudo, daí que, quase durante uma época, eu tenha tido, ainda antes de ser hábito, um treinador de guarda-redes privativo, o Nelo Vingada...

- Voltando à questão do Vítor, houve um denominador comum: antes de ir para qualquer um dos dez países estrangeiros onde trabalhei, sempre tentei saber qual era a cultura, a religião, a política, a alimentação, enfim, os valores vigentes em cada realidade.

VS - Onde foi a primeira experiência no estrangeiro?

- Foi na Arábia Saudita, em 1996, a seguir aos Jogos Olímpicos de Atlanta, onde fui selecionador da equipa de Portugal que disputou, com o Brasil, a medalha de bronze. Não posso dizer que tivesse havido um choque cultural na Arábia Saudita, porque já tinha estado em 1989, quando Portugal foi campeão do mundo de sub-20. Mas fui para uma sociedade totalmente diferente, até porque, tendo estado lá no Mundial era uma coisa, e ser selecionador local era outra.

UMA HISTÓRIA DAS ARÁBIAS

JMD - Consta que foi despedido da seleção saudita por se ter recusado a fazer uma substituição ordenada pelo Príncipe…

- Sim, isso corresponde à verdade. Tínhamos sido campeões da Ásia, o que até para mim foi surpreendente. A verdade é que a Arábia Saudita nunca mais ganhou o troféu, e até estive no Dubai em janeiro passado a celebrar essa conquista. Tinha bons jogadores, e foi possível construir uma equipa forte, embora deva considerar que o Irão era melhor que nós, com jogadores como Ali Daei, Mahdavikia, ou Bagheri, que fizeram carreira na Bundesliga. Mas tínhamos um guarda-redes fantástico, o Mohamed Abdullaziz Al-Deayea, que considero o melhor de todos com quem trabalhei.

JMD - Eu incluído? [risos…]

- Sim. Era de facto fantástico, um guarda-redes que jogava muito bem com os pés, e tinha um enquadramento importante nas movimentações da equipa. Devemos-lhe boa parte do título, até porque tanto nas meias-finais, como na final, defendeu os penáltis decisivos…

JMD - Voltando ao despedimento…

- Estávamos na fase de apuramento para o Mundial de 1998, no mesmo grupo do Irão, as coisas estavam a caminhar bem, e ganhando ficaríamos a um ponto do apuramento para França. Devo dizer que o Príncipe, que era presidente da Federação, filho do Rei, e Ministro do Desporto, reunia comigo antes dos jogos, e nunca mostrou, mas nunca me deu o mínimo sinal de pressão para jogar este ou aquele. Para o jogo com o Catar, nada, nunca houve. Naquele jogo, deixei de fora o Sami Al Jaber, que era o jogador mais emblemático…

JMD - Uma espécie de Cristiano Ronaldo…

- Não tinha a dimensão que Ronaldo tem para o futebol português, mas era, de facto, uma grande figura. Porém, só jogava quando tínhamos a bola, o que significava que quando tocava a defender era problemático. Nos jogos fáceis não se notava, mas ali estava a decidir-se a ida a um Mundial. Bom, naquele jogo com o Catar deixei-o no banco e chegámos ao intervalo com 0-0. Foi quando, através do manager, me chegou a informação de que o Príncipe me ordenava que fizesse uma substituição e mandasse a jogo o Al Jaber. Obviamente disse que não, e o curioso é que, em conversa com o António Simões, que era meu adjunto, e o treinador local, tínhamos decidido fazer uma substituição, mas achámos por bem dar mais dez ou quinze minutos a quem íamos tirar, para ver se mudava alguma coisa. A verdade é que o telefone que tinha no banco não parou de tocar, e por volta dos 60 minutos meti o Fahad Al-Mehallel (por acaso até tirei o jogador que o Príncipe tinha mandado sair), que mal entrou marcou o golo da vitória, que nos deixou com o apuramento na mão. No dia seguinte fui chamado à Federação e disseram-me que estava despedido por ter desobedecido a uma ordem do Príncipe, que também era presidente da Federação e ministro do Desporto. Vim até a saber, depois, que o comentário que o Príncipe fez ao facto de o jogador que fiz entrar ter marcado o golo da vitória foi, «se tivesse feito o que eu disse, nessa altura já estaríamos a ganhar». Bom, pagaram-me tudo, menos o prémio de apuramento, que era uma parte substancial do contrato, mas tinha 43 anos e, francamente, nem dei importância ao assunto. Portanto, depois de ter dito aquele «não» passei a ter facilidade em dizer «não» a muitas coisas no futebol.

NELO ‘TROTAMUNDOS’

VS - Mas o Nelo tem fama de ser uma pessoa dada a consensos…

- De um modo geral, a minha carreira sempre foi gerida na base do consenso e por saber ouvir, daí que tenha tido bons resultados na maior parte dos países por onde passei. Mas estive em dois sítios mais complicados: no Irão, porque trabalhei num grande clube, que é o Persópolis, na altura errada, marcada por uma série de confusões e onde demoraram seis anos a pagarem-me o que me era devido; e na China, onde a dimensão profissional dos jogadores, e o próprio enquadramento, deixavam a desejar. Uma surpresa muito agradável foi a Índia, onde o futebol continua a melhorar e encontrei jogadores que ou vinham da formação, ou de jogar na rua, porque naquele país a única modalidade que tem condições é o cricket.

VS - Já a Coreia do Sul é outra coisa?

- Na Coreia encontrei, não só ótimas condições, mas sobretudo uma cultura e uma mentalidade profissional fantásticas, horários sempre cumpridos e jogadores que se fosse preciso dizer, «batam com a cabeça na parede», nem questionavam…

JMD - Na minha última época de jogador, no Espinho [em 1988/89], cruzei-me com o Zezé Gomes, que tinha jogado emprestado pelo Fluminense no Pohang Steelers, que contava que muitas vezes, ao intervalo, os jogadores locais eram alinhados em fila e o treinador dava um estalo a quem achasse que não estava a jogar bem. Viveu esta realidade?

- Todos os clubes tinham equipas B, formadas por jovens jogadores, que faziam um campeonato paralelo. Num dos jogos, vi o treinador da equipa adversária substituir um jogador e dar-lhe uma palmada na cara. E até no meu clube, o FC Seoul, onde fui campeão, assisti ao treinador da equipa B, que era coreano, maltratar um jogador que substituiu ao intervalo. No final do jogo fui à cabina e disse ao treinador que aquele jogador, que chorava baba e ranho, passava a trabalhar comigo na equipa principal.

VS - Na sua génese o futebol é igual em todo o mundo?

- O futebol é igual em todos os países. São onze contra onze e a bola é o elemento mais importante, sem bola não há jogo. Podem até jogar sete contra sete e há jogo; podem faltar o árbitro e o jogo tem que se realizar nem que se vá buscar um adepto à bancada, ou os capitães, em último caso; mas sem bola é que não há jogo. Essa realidade é comum a todas as partes do mundo, assim como a mesma vontade de treinar, a mesma disposição, o mesmo ambiente antes do jogo.

VS - Há coisas que Portugal podia importar?

- Na Coreia do Sul, antes de começar o campeonato, todos os treinadores da K League reuniam-se num fim de semana com os árbitros. Íamos para um hotel convidados pela Federação, jogávamos uns contra os outros, um árbitro fazia de treinador e um treinador arbitrava, e cada um percebia as dificuldades dos outros.

VS - Essa proximidade entre os treinadores e os árbitros determinava maior compreensão, maior tolerância e melhor comportamento?

- Antes dos jogos, o treinador da casa recebia na sua sala os árbitros, os dirigentes das equipas, e os capitães também passavam por lá. Tomávamos um chá ou um café, conversávamos e antes e depois do jogo, os treinadores cumprimentarem-se com educação e civismo.

VS - E na Índia, como é?

- Na Índia, na Superliga, que já não tem a expressão que teve, o primeiro jogo é especificamente selecionado e fazem um evento tipo Super Bowl, um espetáculo de luz, fogo de artifício, música, absolutamente fantástico.

JMD - Ao estilo de Bollywood?

- Bollywood é maior que Hollywood. A grandeza da indústria do cinema na Índia é brutal! Resumindo, mesmo nos países como a Índia, onde o futebol não tem a expressão que conhece na Europa, há coisas que podemos aprender. E eu sempre tive capacidade de aprender.

VS - Em relação à Índia, sente-se a importância cultural portuguesa, especialmente em Goa?

- Goa tem um dos bons clubes da Superliga e na minha altura era o Zico o treinador. Mas estamos na Índia e quando chegamos a Goa é tudo diferente, não há edifícios enormes, o trânsito é normal, a paisagem, paradisíaca, especialmente as praias, e encontramos igrejas, cafés, mercearias, casas, exatamente como em Portugal. Mas costumo explorar os sítios por onde passo e, por exemplo, no Sri Lanka, o antigo Ceilão, encontrei uma série de símbolos da cultura portuguesa; na Malásia, em Malaca, a hora e meia de Kuala Lumpur, temos o bairro português, que é um mundo completamente à parte, onde podemos entrar no Café Lisboa. É esse nosso passado, que trazemos no ADN, que explica a vocação universal que é a nossa imagem de marca…

VS - Isso ajuda o treinador português a adaptar-se?

- É uma mais-valia importante. Até 1996, quando iniciei o meu percurso internacional, os treinadores portugueses que tinham trabalhado no estrangeiro eram muito poucos: Severiano Correia, um homem de referência de A BOLA, esteve no Brasil e na Grécia, o Artur Jorge foi para o Matra Racing de Paris, depois de sagrar-se campeão europeu pelo FC Porto, o Quinito esteve no Kuwait, e eu, quando fui para a Arábia Saudita, ajudei a abrir portas, especialmente depois de ter-me sagrado Campeão da Ásia. Naquela altura, quando me apresentavam como treinador português, as referências que eram imediatas: Eusébio e Benfica.

JMD - Ainda não falou da sua experiência no Egito…

- Trabalhei nesse país em três ocasiões, e fui campeão pelo Zamalek, sem derrotas. O português de maior sucesso no Egito chama-se Manuel José, foi campeão pelo Al-Ahly seis vezes e ganhou a Champions africana outras quatro, além de ter ficado em terceiro lugar num Mundial de clubes. Porém, ainda antes dele, eu fui o primeiro português a ter sucesso no Egito.

EXPERIÊNCIA NO BENFICA

JMD - Foi adjunto de Graham Souness no Benfica durante a presidência de Vale e Azevedo. Foram tempos difíceis?

- Sim, e ao mesmo tempo era também coordenador do futebol jovem. Souness não falava português, mas o facto de ter trabalhado com Hagan no Belenenses ajudou-me e não foi um grande choque. Lembra-se que às vezes Jimmy Hagan trazia a equipa escrita num papelinho e nem palestra antes do jogo dava…

JMD - Sim, Jimmy Hagan muitas vezes escrevia o onze nas costas do papel de prata que embrulhava os cigarros e dizia que a mulher fumava e bebia por ela e por ele…

- Depois de Vale e Azevedo ganhar as eleições, o primeiro jogo foi em Chaves e ainda foi Mário Wilson a orientar a equipa. A estreia de Souness foi contra o V. Guimarães na Luz, e naquela altura não havia estágio, apenas nos juntávamos de manhã. Disse ao Souness que os jogadores estavam habituados a uma palestra antes dos jogos e ele disse-me que em Inglaterra o treinador não falava no dia do jogo, o que tinha a dizer, dizia durante a semana. Mas lá acedeu e deu uma preleção de dez minutos, fazendo questão de dizer que tinha sido a primeira vez na sua carreira. O que ele gostava era de participar nos treinos e tinha, de facto, uma qualidade fantástica. Às vezes eu até lhe dizia que ainda podia jogar…

JMD - Aliás, ele era quase da mesma idade do Michael Thomas…

- Mas gostava de dizer que cheguei a um grande clube como o Benfica num tempo que não foi o mais apropriado, houve muitas confusões, e eu e o António Simões rapidamente percebemos que não era aquilo que estávamos à espera. Mas também houve coisas positivas, o lado irreverente de Vale e Azevedo fê-lo entrar em confronto com a SportTV e isso não só mobilizou os adeptos do Benfica, como alterou a relação entre os clubes e os operadores.

FUTEBOL E ACADEMIA

VS - Foi um dos primeiros licenciados do ISEF a entrar no mundo do futebol, como treinador. Como foi fazer parte dessa revolução?

- Comecei por ser estudante do ainda INEF, depois fui professor no ISEF, mas nunca deixei de ser visto como o Nelo que jogava futebol. Joguei no Belenenses, no Atlético, aliás fiquei a saber, através do Rui Tovar, que marquei, em 1977, o último golo do clube de Alcântara na I Divisão, e só comecei a ganhar outra dimensão a partir do momento em que comecei a trabalhar nas Seleções. Mas foi importante quando, vindo do meio académico, estive envolvido na formação dos treinadores. A alma mater dessa junção da academia com treinadores de referência, tais como Mário Wilson, José Maria Pedroto, António Medeiros, Manuel Oliveira, Francisco Andrade e outros, foi o professor Mirandela da Costa, a quem acho que o futebol português deve muito. Apesar de nunca ter sido treinador, levou o futebol para o ISEF, e eu fui o primeiro professor dessa especialidade.

VS - Quando foi criado, no ISEF, o Departamento de Futebol, era quase um abcesso da instituição…

- De facto, era. Hoje em dia, a maioria dos estudantes quer ir para o Departamento de Futebol. Lembro-me que, quando fui convidado, já dava aulas e treinava as camadas jovens do Vilafranquense ou do Atlético. Foi o professor Melo Barreiros, presidente da Comissão Instaladora, juntamente com o professor Machado da Costa, que até pertencia à área do andebol. Julgo que se lembraram de mim porque ainda viam o Nelo que também jogava futebol. Na minha altura de estudante os mais emblemáticos do futebol era eu, porque jogava na I Divisão, e o Henrique Tomás, pai do João Tomás, que jogava no Oliveira do Bairro, e era um ponta de lança muito bom..

JMD - Como foram os primeiros tempos, quando ainda eram olhados, pelo resto da Academia, com desconfiança, para não dizer com desdém?

- Posso dizer que estudei mais para ser professor do que quando era aluno. Já depois do Departamento ter sido instalado, juntou-se o Jesualdo Ferreira, sempre com Mirandela da Costa como elo de ligação. Era muito exigente, obrigava-nos a escrever programas e, graças a Deus, contribuiu para a nossa melhor formação

VS - Quando é que Carlos Queiroz entra no processo?

- O Carlos Queiroz era estudante do quinto ano e estava na opção de futebol Quando acabou o curso juntou-se a nós como assistente convidado e depois vieram o Arnaldo Cunha, o Jorge Castelo, e outros mais.

JMD - Quem foram os vossos alunos que se destacaram mais?

- Os que se destacaram mais na carreira de treinador foram o José Mourinho e o José Peseiro. Mas também o José Morais, que agora está no Irão e foi campeão na Coreia do Sul, o Carlos Diniz, o António Violante...

JMD - Foi, como já vimos, um dos primeiros treinadores portugueses a emigrar, e agora temos mais de 400 técnicos de futebol a trabalhar lá fora, algo que escapa à generalidade dos observadores…

- É algo que tem a ver com a nossa história. Quando se fala em história, tem-se a noção de passado, mas a história é o nosso futuro. Se a olharmos, podemos fazer um futuro melhor.

JMD - Mas o futebol de hoje não é a mesma coisa do futebol do passado…

- Está virado para o negócio. No nosso tempo também era negócio, mas...

VS - Hoje temos melhores jogadores?

- Sempre tivemos bons jogadores. Obviamente que hoje temos mais quantidade e de grande qualidade…

A DUPLA QUEIROZ/VINGADA

JMD - Mas isso deve-se a uma conjugação astral: primeiro Portugal foi campeão do Mundo de sub-20 em 1989 e 1991, com Carlos Queiroz e consigo, e em 1995 aconteceu o Acórdão Bosman, que permitiu a essa geração e às seguintes evoluir em campeonatos mais competitivos. Até de 1930 a 1998 Portugal só foi a quatro fases finais de grandes competições, e a partir de 2000 nunca mais falhou uma que fosse…

- É verdade que hoje o acesso a essas provas está mais facilitado, pelo maior número de países presentes nas fases finais, mas não há dúvida de que a qualidade que sempre tivemos está suportada na quantidade. Hoje não uma Seleção A, outra B, e outra C, mas sim a Seleção A, a A1 e a A2, muito equivalentes. Há uns anos olhávamos para o Brasil e dizíamos que era o melhor do mundo porque tinha uma panóplia infindável de grandes jogadores. Hoje, Portugal tem essa capacidade…

VS - A dupla Carlos Queiroz e Nelo Vingada ajudou a criar esta revolução?

- A estrutura e organização criadas, e a capacidade de Carlos Queiroz, foram fundamentais, sem esquecer o apoio que a FPF nos deu.

JMD - A diferença de feitios entre os dois torna-os complementares?

- Costumo dizer que somos um bocadinho como o dr. Jekyll e o mr. Hyde, uma espécie de duas peças de Lego que encaixam bem, sendo de cores diferentes, até do ponto de vista político. Ele é o meu melhor amigo e temos uma relação como se fôssemos da mesma família.

- Se Carlos Queiroz não fosse tão Carlos Queiroz, podia ter ido ainda mais longe?

- Creio que sim, porque o mereceria, pelo conhecimento e capacidade que possui. Ainda há pouco tempo estive no Catar a dar-lhe uma ajuda, observando os adversários que iria encontrar, não só no apuramento para o Campeonato do Mundo, como também na Taça de Ásia, mas houve algumas confusões e ele saiu. Mas a visão que tem do futebol mereceria melhores resultados, embora deva estar orgulhoso da carreira que fez. O paradigma do futebol português mudou graças à visão de futuro que sempre teve e eu posso dizer, com orgulho, que sempre fui a pessoa que esteve mais próxima dele.

JMD - Gosta do futebol que vê nos dias de hoje ou acha-o demasiado monótono e repetitivo?

- Do futebol, gosto, mas reconheço que, às vezes, as pessoas que o envolvem não dão um contributo assim tão positivo. Como é possível não gostar de um jogo como o do Manchester City em Madrid? Quem não gostava de futebol, passou a gostar. Aquele é o futebol que devíamos ter e já não falo sequer da qualidade. Viram a reação dos jogadores perante o árbitro, no meio de toda aquela emoção? O jogo teve pouquíssimas faltas, o árbitro deixou jogar, mesmo quando houve algumas entradas no limite, que até gosto de ver. Em Portugal, com tantos jogadores bons, embora os melhores estejam fora, vemos alguns jogos com qualidade, mas há sempre uma mancha, uma discussão.

VS - É inevitável, trata-se de uma questão de mentalidade?

- Estive recentemente com Artur Soares Dias, que conheço desde os meus tempos na Académica, e refletimos sobre o facto de não ser fácil arbitrar, sendo que os intervenientes são os primeiros a não ajudar a que o árbitro tenha um trabalho de maior qualidade.

JMD - Ainda continuamos a ter a mentalidade de que vale a pena pressionar o árbitro para retirar vantagem?

- Sim. A quantidade de lances em que o jogador se atira para o chão, parecendo aflito, é insuportável. Ponham os olhos no Bernardo Silva. Ao princípio caía e agora já não cai. E ele próprio faz faltas, é agressivo, vê cartões amarelos, mas tem o empenhamento certo. Gosto imenso dele, que é um modelo e um exemplo do que deve ser a atitude do jogador perante a competição. Podemos ter, de facto, em Portugal, um campeonato melhor se acabarmos com alguns comportamentos desviantes

JMD - Há clubes a mais na nossa I Divisão?

- É verdade. Serem 16 ou 18, é irrelevante. Na Coreia são 12 equipas, que jogam em três voltas. Depois fazem uma volta com os seis primeiros, para determinar o campeão. E aquele play-off, onde os pontos anteriores contam, torna o campeonato extremamente competitivo.

JMD - Os jogadores hoje em dia estão sujeitos a jogos a mais?

- Em Inglaterra jogam e os jogadores não se queixam. Francamente, acho que se perguntarem, mesmo cá, aos jogadores e aos treinadores, eles vão dizer que preferem jogar duas vezes por semana. Quem joga mais, treina menos, e não há nenhum treino tão bom como o jogo. Que traz benefício físico, e desenvolvimento das qualidades psíquicas, técnicas e táticas. Por muito científico que se seja, por melhor organização que um treino tenha, nunca se consegue reproduzir o jogo.

SPORTING MAIS FORTE

VS - E em relação ao campeonato português desta temporada, qual é a sua visão?

- O Sporting é quem tem gerido de forma mais eficiente o plantel, porque o construiu melhor que os outros, permitindo uma utilização mais generalizada de jogadores. É quem tem o melhor equilíbrio. Possui um grupo de 16 a 17 jogadores que permite a Rúben Amorim tirar o A e meter o B, e aquilo funciona. Criaram uma identidade, coisa que não é fácil. Ter um estilo de jogo pode ser rápido, já criar uma identidade é diferente.

JMD - Tem a ver com a estabilidade dada ao treinador?

- Sim, mas há uma conjugação importante de fatores: tem o treinador já há algum tempo, apostou num certo modelo de jogo, tem estabilidade, e tem bons jogadores, obviamente. Com tudo isto Rúben Amorim criou uma equipa agradável de ver, que ataca e defende, movimenta-se e cria oportunidades. Não estamos perante uma equipa perfeita, mas trata-se de um conjunto compacto e consistente.

VS - Rúben Amorim está preparado para o salto de treinar uma das grandes equipas das ‘Big Five’?

- Sendo jovem, tem um conhecimento e um domínio daquilo que é básico na relação com os jogadores e com a equipa. Está a mostrar isso no Sporting, mas antes, rapidamente o conseguiu no SC Braga. Parece consistente no discurso, com uma relação boa com os jogadores, leal e justo nas decisões que toma. Consegue ao mesmo tempo impor respeito, com uma afetividade muito grande.

JMD - É mais importante o jogador respeitar do que temer o treinador?

- Sem dúvida. Se o jogador temer o treinador, isso é um passo para não o respeitar. Temer o treinador funciona como bloqueio.

VS - E o Benfica, que parece ir despedir-se do título?

- O Benfica perdeu um pouco a identidade da época passada. Talvez a abundância tenha sido fator de alguma instabilidade… Mas é curioso: o treinador chegou, não conhecia a cultura e a realidade do futebol português, nunca cá tinha vivido, e passado um mês tinha a equipa a jogar um futebol espetacular e parecia que já cá estava há três anos. Uma época volvida, supostamente com melhores jogadores e um plantel mais forte, as coisas não funcionaram tão bem. Mas também temos de olhar para os outros e embora tenha havido menos FC Porto, o Sporting mostrou-se mais forte, tendo neste momento uma vantagem notável.