A tragédia que pôs Cancelo a festejar como festejou com Camp Nou a arder…
Foto: IMAGO

A tragédia que pôs Cancelo a festejar como festejou com Camp Nou a arder…

INTERNACIONAL24.09.202312:40

Na celebração do golo ao Celta, viu-se o ritual repetido em emoção: o sinal do beijo, os dedos erguidos aos céus. Sim, tudo isso aconteceu por causa do drama que se soltou do despiste do carro da mãe com o João Cancelo e o irmão a dormirem no banco de trás (e é muito mais do que isso que aqui se recorda…)

Apesar de um outro brilharete que já se vira a soltar-se-lhe do pé, estranho (pelo sentido da autocrítica…) talvez fosse que João Cancelo se sentisse como se sentira antes da assistência para Lewandowski que pôs o 2-2 no placard do Barcelona-Celta: «Pessoalmente, estava a ser um jogo muito mau… Estava com a cabeça perdida no jogo, com muitos erros técnicos que não são normais para mim…» - e, logo depois, ainda mais memorável foi o que sucedeu de seguida, num fogacho: o golo que ficará, decerto, a marcar uma das mais impressionantes remontadas na história do Camp Nou. Da euforia com que o festejou, desceu, depois, ao centro do seu coração – e, por entre beijo insinuado, atirou dois dedos ao céu. Sim, claro, tudo isso tinha justificação (tem justificação) – a razão foi uma tragédia e é isso (e mais…) que aqui se vai contar…

POR ENTRE CHALANA, CARLOS MANUEL (E MAIS), O CIGANO…

Outra história, a história do Benfica está vincada a ouro pelo Barreiro (e não, não é só pelo Fernando Chalana ou o Carlos Manuel, o José Augusto ou o Arsénio) e foi ao Barreirense que o Benfica foi buscar João Cancelo. Ao Seixal chegou no segundo ano de iniciado – e não tardou a marcar o balneário pela sua personalidade forte: temperamental e extrovertido, brincalhão e destemido. Por lhe apanharem, por lá, o aspeto que levava: «sobretudo o corte de cabelo e o tom de pele», chamaram-lhe um dia Cigano – Cigas ficou. À alcunha logo respondeu, criando, inventivo, cognomes para alguns dos seus companheiros – por exemplo: Joanete para Bruno Varela, Cabeça para Bernardo Silva, Portão para Fábio Cardoso. 

Com ele se cruzando Pedro Torrado, recordá-lo-ia, ainda antes da sua explosão: «O Cigas tem um grande espírito competitivo. Detesta tanto perder que até amua. Certa vez, pensando que estava a jogar mal, no intervalo chegou ao balneário a chorar, despiu a camisola, mas não: o mister não o tirou – e foi notável a segunda parte que ele fez…» (Pois, continua assim no seu espírito – mais refinado está, claro, o seu génio…)

O DIA EM QUE «DEU PAU» A BRUNO LAGE

O destino tem caprichos assim: já por essa altura, não o escondia: queria ser «como Dani Alves», o seu ídolo (a eternizar-se no Barcelona). E não era só no seu jogo que punha o coração - era nos treinos também. Amiúde, também lá punha a rebeldia (e a intrepidez) – como, numa tarde em que Bruno Lage era seu treinador e, na peladinha, se juntou à equipa, para jogar a avançado.

Por causa do seu feitio (às vezes em polvorosa), Lage tinha-o atirado (em castigo sem disfarce…) para o banco – e, nessa peladinha, num lance dividido entre os dois… «fez carrinho às pernas do mister». Tão fogoso e destemperado o fez que abriu bocas de espanto pelo campo todo (e ao espanto se seguiu o embaraço). Claro, foi de pronto mandado para o banho – mas a peripécia nunca mais deixou de andar de boca e boca, contada como a vez «em que o Cigas até deu pau no mister…» 

João Cancelo no Benfica

DESPISTE DA MÃE COM ELE E O IRMÃO NO BANCO DE TRÁS

João Pedro Cavaco Cancelo nascera a 27 de maio de 1994 – e, cumprindo, de esplendor em cada vez maior esplendor, o seu caminho para o seu futuro dois golos que marcou ao Rio Ave, fazendo, em 2013, do Benfica campeão de juniores, embrulharam-se, sem dúvida, num sentimentalismo como nunca antes vivera – com ele a viver ainda picado pela tragédia que se lhe colara à vida…

José, o pai, estava emigrado na Suíça. Filomena, a mãe, tinha de desdobrar-se em três trabalhos por dia para aconchegar um bocadinho mais orçamento que se acanhava. Era janeiro (janeiro de 2013 nos seus primeiros dias) – e, indo Filomena com o João e o Pedro (o outro filho) levar José ao aeroporto, no regresso ao Barreiro, com os filhos a dormitarem no banco de trás, adormeceu ao volante, o Audi A3 despistou-se na A2, eles sofreram ferimentos ligeiros, ela morreu. 

Destroçado, João fechou-se em casa dos avós – de destino suspenso: «Estive um mês sem treinar. Os dirigentes do Benfica ligavam-me e eu dizia que não conseguia sair dali, não me sentia preparado para voltar a jogar futebol. Até que um dia o meu pai falou comigo, disse-me que não podia voltar a ser emigrante porque tinha de tomar conta de mim e do meu irmão e foi a partir das lágrimas do meu pai que decidi voltar a jogar…»

CONTRA O FC PORTO, PRIMEIRO TÍTULO PARA A MÃE

À mãe, fizera-lhe declaração que se tornou a divisa para o ataque ao futuro: «Perdi a luz da minha vida, a minha razão de viver. Estejas onde estiveres, quero que olhes por mim e que protejas o pai e o mano. Estou morto por dentro, mas vou ser forte e vou dar-te o maior orgulho do mundo» - e, a 25 de janeiro de 2014, Jorge Jesus abriu-lhe a primeira equipa do Benfica: oito minutos esteve em jogo com o Gil Vicente para a Taça da Liga. Luís Filipe Vieira achava que seria o substituto de Maxi, mas Jesus só voltaria a aproveitá-lo no último jogo do campeonato contra o FC Porto – e esses 62 minutos no Dragão valeram-lhe o primeiro título que deu à mãe. A promessa fizera-a sem demora: que cada golo que marcasse seria para ela (e, sim, foi o que aconteceu, outra vez, em Camp Nou…)

HÉLDER CRISTÓVÃO NÃO FALHOU, DANI ALVES ENTROU NO SONHO

A Hélder Cristóvão, seu treinador na equipa B do Benfica, apanhar-se-ia a premonição: «João Cancelo é talvez o melhor jogador que já passou pelo Benfica B. Consegue sair de qualquer situação: ou de pé esquerdo ou de pé direito, ou por dentro ou por fora. Teve alguns conflitos internos com ele mesmo - superados no Valência. Fiz uma aposta com ele de que seria um dos cinco melhores laterais do mundo, vai lá chegar…» 

Fora algures por 2014 que o Benfica transferira-o para o Valência por 15 milhões de euros – e, por entre o negócio, correra rumor de que o Barcelona pensara pensar nele para render… Dani Alves. Antes de lá chegar – ainda saltitou por outros caminhos. 

PEDIDO DA CAMISOLA 7 SEM SER POR FIGO

Algures pelo verão de 2017 (depois do gesto a mandar calar os próprios adeptos na sequência de um golo ao Corunha…), emprestaram-no ao Inter – e, ao chegar a Milão, pediu que lhe dessem a camisola 7. 

A quem cogitara que a razão era uma, João Cancelo explicou que era outra: «Não, não é por ter sido o número de Figo aqui, foi um dos melhores jogadores da história, mas eu não quero imitar ninguém, quero o 7 por ser o dia de nascimento da minha mãe».

DO ENGANO DE BERGOMI À SELEÇÃO

Podendo o Inter ter exercido opção de compra, não a exerceu - e Bergomi, um dos seus ícones, largou em remoque: «Nunca pagaria 35 milhões por um jogador como Cancelo, por ser pouco consistente do ponto de vista defensivo». Na Juventus achou-se o contrário – e por 40 milhões o levaram para Turim. E, claro, não tardou a mostrar que Bergomi era muito melhor a jogar futebol do que a ver outros jogarem futebol. (Para além da Série A de 2018/2019, conquistou a Supertaça de Itália). 

Pela seleção A de Portugal se estreara em agosto de 2016 com golo a Gibraltar (dedicado, obviamente, no trejeito que se imagina…) – mais dois golos marcou durante o apuramento, um a Andorra, outro às Ilhas Faroe (com o ritual a manter-se…) 

DO CASSANO ÀS REZAS NA CAMPA

Fernando Santos acabou por não o convocar para o Mundial – e com Guardiola fascinado por ele, o Manchester City contratou-o por 65 milhões de euros. Mesmo que nunca se tenha dado tanto por um lateral, que não se viu em ludíbrio, ao contrário de Bergomi, foi Antonio Cassano ouvir-se-ia em remoque: «Não o tinha vendido nem por 400 milhões, vender Cancelo é cuspir na cara do futebol, ele é um fenómeno». 

Com papel já decisivo na conquista por Portugal da Liga das Nações (de 2018/2019), andando-se já por 2020, encapado em (óbvia) emoção, João Cancelo contou-o no Canal 11: «Sei que a minha mãe está muito orgulhosa do meu percurso. Sempre que posso vou à campa dela rezar e pedir-lhe para abençoar os meus passos. Sei que o está a fazer porque cada ano da minha carreira tem sido de progresso. E tudo o que faço, todos os títulos que ganho, individuais e coletivos, são em memória dela, por ela».

«NUNCA DÊS CANCELO COMO MORTO»

Os títulos – e os golos. Uma coisa e outra celebrada entre o beijo e os dedos erguidos aos céus. Como no golo (e o resto…) que levou, por exemplo, a que no Mundo Deportivo se tenha escrito: «Numa confissão sincera, Xavi assegurou que a chegada de Gundogan tinha caído do céu pelas suas prestações, rendimento e contribuição que trouxe para a equipa e balneário. O treinador podia dizer o mesmo de João Cancelo, fundamental neste Barça de Xavi pela sua disciplina tática e veia goleadora. O lateral-direito português, que voltou a jogar no ataque como falso médio, deu a assistência para o segundo golo de Lewandowski, no empate, e anotou o épico 3-2». Ou que, em exaltação, tenha passado pela Marca a frase: «Nunca dês Cancelo como morto» - e o As o ungisse como o «herói da noite» (nessa noite em que também houve Félix a nascer como Fénix das cinzas). 

Do City saíra João Cancelo com a Premier League de 2020/2021, 2021/2022 e 2022/23 e com a Taça da Liga de 2019/2020 e 2020/2021 para o Bayern por empréstimo. Campeã da Bundesliga de 2022/2023, os bávaros não acionaram a opção de compra de 70 milhões de euros – e, feliz, foi para o Barcelona (sob empréstimo também) atrás do que, no fundo, nunca deixou de ter, aconchegado em si, como sonho: «ser como Dani Alves»… 

Vídeos

shimmer
shimmer
shimmer
shimmer