A cabeçada de Zidane em Materazzi chega à maioridade
9 de julho de 2006 9 de julho de 2024. Passaram-se 18 anos sobre a mais famosa agressão de uma final de Campeonato do Mundo
A França joga esta terça-feira com a Espanha em jogo da meia-final do Euro2024. Há exatos 18 anos, em Berlim, Lamine Yamal e Zaire-Emery ainda não eram nascidos e Fermín López, Pedri, Nico Williams, Álex Baena, Ferran Torres, Eduardo Camavinga, Bradley Barcola, William Saliba e Aurélien Tchouaméni ainda não andavam na escola. Porém, N’Golo Kanté, Antoine Griezmann, Olivier Giroud, Dani Carvajal, Joselu, Nacho e Jesus Navas, os mais velhos dos convocados de Didier Deschamps e Luis de la Fuente, devem lembrar-se bem daquele final de tarde de 9 de julho de 2006.
O Olympiastadion estava cheio que nem um daqueles ovos de galinhas gordas. Já não havia Adolf Hitler ou Jesse Owens, como nos Jogos Olímpicos de 1936, mas lá em baixo, no esplendoroso relvado do estádio berlinense, onde pouco antes atuara a colombiana Shakiara, estava uma taça para ser entregue. A de campeão do Mundo de 2006.
De um lado, onze italianos: Buffon com apenas 28 anos; Zambrotta a caminho do Barcelona; o capitão Cannavaro que ‘trairia’ a Juventus e assinaria pelo Real Madrid após a descida de vecchia signora à Serie B; Materazzi , 32 anos, filho do treinador que iniciou a época no Sporting campeão em 2000; Grosso, o esquerdino que marcaria o penálti decisivo do desempate; Camoranesi, o italo-argentino de Tandil; Gattuso, um dos mais implacáveis médios-defensivos que o futebol já vira; Pirlo, o sublime criativo de Flero; Perrotta, o italo-inglês de Ashton-under-Lyne; Totti, o adorado atacante da Associazione Sportiva Roma; Luca Toni, o número 9 da squadra azzurra.
Do outro lado, onze franceses: Barthez, o exótico e careca campeão do Mundo de 1998 e da Europa de 2000; Sagnol, o defesa do Bayern que, em 2024, treinando a Geórgia, ganharia por 3-0 a Portugal; Thuram, o Lilian não o Marcus; Gallas, o homem que deixaria, no final do Mundial, o Chelsea de Mourinho para ir para o Arsenal de Arsène Wenger; Abidal, campeão em França, Espanha e Grécia; Vieira, o franco-senegalês capitão do Arsenal invencível de Wenger em 2003/2004; Makélélé, o Kanté do início do século XXI; Ribéry, o extremo veloz e tecnicista cujo cicatriz no rosto o tornaria ainda mais mediático; Zinedine Zidane, 34 anos, um dos maiores craques que o futebol viu desde que há futebol no Mundo; Malouda, o extremo que haveria de ser modelado por Mourinho no Chelsea; Henry, o filiforme e quase esquálido que bem merecia ter sido eleito Bola de Ouro algures na carreira.
Aos sete minutos desse Itália-França, após Marco Materazzi ter cometido falta sobre Florent Malouda, o argentino Horacio Elizondo apitou e apontou para a marca dos 11 metros: Zinedine Zidane e Gianluigi Buffon frente-a-frente. O francês recuou três ou quatro metros e fez aquilo que, 30 anos antes, o checo Antonin Panenka fizera, em Belgrado, ao alemão Sepp Maier: picou a bola em jeito. Tão em jeito foi que, batendo na barra e caindo quase na vertical, sem que houvesse, então, tecnologia de linha de baliza, os franceses tremeram que não fosse golo e os italianos rezaram para que não fosse. Elizondo, porém, apontou para o centro do terreno: 1-0 para a França. Ou antes 0-1, porque les bleus eram considerados forasteiros.
Doze minutos depois, após canto de Andrea Pirlo sobre a direita, Marco Materazzi subiu bem alto nos céus berlinenses e, nas costas de Patrick Vieira (193 centímetros para cada), desferiu cabeçada tão forte que, ainda hoje, Fabian Barthez deve estar a tentar perceber por onde ela passou, se por entre as duas mãos, se bem rente à cabeça do bem mais minorca Franck Ribéry (170 centímetros), que cobria o poste direito: 1-1 para a Itália.
Com dois golos antes dos 20 minutos, acreditou-se que seria uma final com muitos golos. Talvez cinco como em 1986 (Argentina-Alemanha, 3-2), 1970 (Brasil-Itália, 4-1) ou 1954 (Alemanha-Hungria, 3-2), quatro como em 1982 (Itália-RFA, 3-1), 1978 (Argentina-Holanda, perdão Países Baixos, 3-1) ou1962 (Brasil-Checoslováquia, 3-1) ou, desejo dos desejos, sete como em 1958 (Brasil-Suécia, 5-2). Porém, os deuses futebolísticos não estavam para aí virados e as emoções maiores terminaram ao minuto 19: 1-1. Dois golos até aos 19, dois golos até aos 45’, dois golos até aos 90’, dois golos no final dos 120’.
Quando atrás escrevemos ‘emoções maiores’ talvez não seja a expressão exata, pois a emoção maior estava reservada para o minuto 110. Materazzi agarrou ligeiramente Zidane à entrada da área italiana e largou-o. O francês continuou a trotar de forma bem lenta, enquanto o italiano balbuciava qualquer coisa. ZZ virou-se, deu um passo na direção de MM e desferiu-lhe no peito a mais mediática cabeçada que o mundo do futebol viu e verá: Materazzi caiu, redondinho, no relvado do Olympiastadion.
Fabio Cannavaro chamou a atenção de Elizondo. Pirlo, Gattuso e Iaquinta aproximaram-se de Materazzi enquanto Zidane ajeitava, nervoso, a braçadeira de capitão. Buffon, esbracejando, juntou-se ao francês, parecendo dizer-lhe qualquer coisa como ‘que é que foi aquilo? Cento e sete segundos depois, o cartão vermelho sai da mão direita de Elizondo rumo ao rosto de Zidane. ZZ conferencia um pouco com o árbitro e, pouco depois, sai de campo. Desata o que tinha no punho e, desconsolado, passa ao lado da taça Jules Rimet e regressa ao balneário da França.
Estávamos a 9 de julho de 2006. A Itália sagrar-se-ia campeã do Mundo no desempate por grandes penalidades, com David Trezeguet a tornar-se em 2006 o que João Félix foi em 2024: o único a falhar um remate dos 11 metros. Quarto título para a Itália, depois de 1934, 1938 e 1982. A França, depois de 1998 e antes de 2018, falhava a conquista de um segundo Campeonato do Mundo.
Dias depois, já em França, Zidane abriu um pouco o jogo sobre as palavras que trocou com Materazzi. «Ele estava a agarrar-me a camisola junto à área italiana e eu disse-lhe que, se ele quisesse, podia dar-lhe a camisola no final do jogo. Ele sorriu e, instantes depois, insultou a minha mãe e a minha irmã. Não resisti e dei-lhe uma cabeçada no peito. Não estou orgulhoso pelo que fiz, mas nunca lhe pedirei desculpa. Preferiria morrer a fazê-lo».
Também Materazzi, dias depois, comentou o assunto: «Sim, disse-lhe qualquer coisa sobre a irmã, julgo, mas são daquelas coisas que se dizem durante os jogos, nada mais, espécie de trash talk. Fiquei surpreso, confesso, com a reação dele».
Muito tempo depois, através de leituras labiais, uma televisão italiana decifrava, enfim, as misteriosas palavras entre ZZ e MM. «Joga a bola, pá, ou queres a minha camisola? Posso dar-ta no fim», disse Zidane. «Não quero, prefiro a p… da tua irmã, maricas do c……, vai tomar no c…», respondeu Materazzi. E saiu, então, a mais famosa cabeçada do futebol mundial: pum, e acabaria a carreira de Zidane. Não só na Seleção de França, como em todos os clubes, pois Zizou prometera, antes do Mundial da Alemanha, que seriam esses os seus últimos jogos.
Foi há 18 anos, no Olympiastadion de Berlim. Sem Adolf Hitler e Jesse Owens, mas com Zinedine Zidane e Marco Materazzi.