30 anos do pontapé de Cantona: «Tive pena de não lhe ter dado com mais força»

INTERNACIONAL25.01.202509:00

Viagem à noite de 25 de janeiro de 1995, quando um futebolista fez o que muitos queriam ter feito antes e depois dele. Pagou por isso mas nunca se arrependeu. História de um dos maiores ícones do Manchester United, um clube com atração pelo drama

Todos os anos do calendário estão carregados de ironias. 1995 não foi exceção. Foi nomeado pelas Nações Unidas o Ano da Tolerância, em homenagem aos 50 anos do fim da II Guerra Mundial. Conceito que se esfumou logo no primeiro mês por causa de dois eventos que viriam a marcar a história contemporânea, cada um à sua dimensão: a 24 de janeiro começava nos Estados Unidos o julgamento de OJ Simpson e no dia seguinte, numa noite fria de Londres, um futebolista de classe mundial perdia completamente as estribeiras, partindo para cima de um adepto, pontapeando-o e esmurrando-o.

Há exatos 30 anos, em Sulhurst Park, o Manchester United deslocava-se a casa do Crystal Palace, em mais uma jornada do campeonato que três anos antes fora renomeado de Premier League. Uma liga com ambiente, contexto e futebol muito diferente do que é hoje: os relvados nem sempre estavam bem tratados, o jogo era mais direto e linear e a fisicalidade roçava a violência. Era um desporto para duros que permitia a equipas como o crazy gang do Wimbledon liderado por Vinnie Jones varrer tudo o que aparecia pela frente com uma complacência que faria história. O tal critério largo que ainda hoje caracteriza os árbitros britânicos.

Como sempre, os red devils eram o alvo a abater. Após seis anos de tentativas falhadas desde a sua chegada, Alex Ferguson vencera pela primeira vez a Premier League em 1993 e nesse janeiro de 1995 preparava-se para atacar o tri. Nascera entretanto o movimento ABU (Anyone but United, Qualquer um menos o United), uma hostilidade contra aquele que ameaça tornar-se hegemónico, sentimento ainda mais vincado em campos das equipas mais fracas. A cultura do pub transportada para a bancada.

O pontapé 'kung fu' de Éric Cantona em Sulhurst Park, a 25 de janeiro de 1995 (Foto IMAGO)
O pontapé 'kung fu' de Éric Cantona em Sulhurst Park, a 25 de janeiro de 1995 (Foto IMAGO)

Depois de uma primeira parte sem golos mas com muitas quezílias, ao terceiro minuto do segundo tempo aquele que era o maior desequilibrador, aquele que desde a sua chegada do campeão Leeds em 1992 (o último da era First Division) tornara o Manchester United finalmente vencedor, é expulso pelo juiz Alan Wilkie depois de uma entrada muito dura sobre Richard Shaw. Enquanto caminha junto à linha lateral, dá-se o inusitado: salta o placard publicitário e aplica o que a imprensa inglesa viria a chamar «pontapé kung fu» a um adepto do Palace, seguindo-se um soco. Não deu mais porque foi agarrado pelos stewards.

As gaivotas e a traineira

Uma ação destas teria sido impossível 10 anos antes graças às vedações nos estádios ingleses para impedir interações físicas entre adeptos e jogadores. Até à tragédia de Hysel Park (Bruxelas), em 1985, na final da Taça dos Campeões Europeus entre Liverpool e Juventus, com a morte de 39 pessoas, a maioria por esmagamento. O pináculo do hoologanismo.

Mas em 1995 a mudança cultural ainda estava em curso, a transformação chegaria mais tarde. Os insultos quase na cara dos jogadores eram uma constante. Até ao dia em que alguém com demasiado pelo na venta não aguentou.

Para a história ficou o que se seguiu. As manchetes dos jornais ingleses sobre «A noite em que o futebol morreu de vergonha» mas também o movimento de apoio ao n.º 7 do United, fosse de adeptos que acorreram ao tribunal onde Cantona seria ouvido, como de muitos colegas. Uns em off, outros em on. «Tenho ciúmes dele, queria ter feito o mesmo», disse Ian Wright.

A chegada de Éric Cantona ao tribunal, em Londres (Foto: IMAGO)
A chegada de Éric Cantona ao tribunal, em Londres (Foto: IMAGO)

Depois de passar a noite na prisão o francês recebeu a sentença: as duas semanas de cárcere pelo crime de agressão seriam substituídas por 120 horas de trabalho comunitário. Na conferência de imprensa que se seguiu, Cantona limitou-se simplesmente a soltar uma frase: «Quando as gaivotas [pausa cénica para beber água] seguem a traineira é porque pensam que as sardinhas vão ser lançadas ao mar. Obrigado.» Seguiram-se, nos dias seguintes, todas as teorias possíveis sobre o que ele queria dizer. À personalidade altiva que Éric cultivava, o mistério daquelas palavras serviu para aumentar a sua gravitas.

«Para mim, o sentido não estava nas palavras, mas na situação em si. Quis pôr um espelho à frente dos jornalistas. Na verdade, aquilo não queria dizer rigorosamente nada. O meu advogado insistia que eu devia falar qualquer coisa aos jornalistas presentes e então decidi escrever qualquer coisa num papel. Saiu-me aquilo», confidenciou anos mais tarde num talk show apresentado pelo inglês Jonathan Ross. Um ato casual, tal como a famosa gola levantada: «Uma vez estava frio, puxei aquilo, ganhámos e tornou-se um hábito.»

Se a justiça civil foi leve, o mesmo não se passou nas instâncias desportivas. O jogador foi suspenso por nove meses pela Federação Inglesa e nunca mais viria a representar a seleção de França. Coincidência ou não, o United perdeu esse campeonato para o Blackburn. E por pouco não perdia Cantona para sempre.

De acordo com vários relatos à época e mais tarde confirmados por várias fontes, inclusive o próprio Alex Ferguson, uma noite de sono foi o fator decisivo para impedir um corte radical. Isso e um jantar em Paris. Segundo os jornais ingleses, todos os elementos da Direção do clube decidiram nessa mesma noite despedir o jogador. Ferguson, sempre astuto, preferiu só visionar as imagens no dia seguinte. Afinal, era uma época em que não havia telemóveis, a informação andava mais devagar e uma decisão dessas não poderia ser tomada a quente. Na manhã seguinte, o escocês decidiu que não iria deixar cair a sua estrela.

Cantona e a mítica camisola 7 sempre será um dos símbolos do Manchester United (Foto: IMAGO)
Cantona e a mítica camisola 7 sempre será um dos símbolos do Manchester United (Foto: IMAGO)

Faltava o resto: convencer Cantona a ficar. O francês partira entretanto para Paris, convencido de que deveria rescindir por sentir falta de apoio dos red devils. Fergie viajou para o outro lado do Canal da Mancha e num jantar a dois, num restaurante reservado para ambos, fez o que sabe melhor: puxar pelo ego do jogador, prometendo que a bonança viria depois da tempestade. «Foi das melhores decisões que tomei neste estúpido emprego», escreveria Alex Ferguson nas suas memórias.

A decisão não surpreendeu o plantel. Todos sabiam que o técnico tinha os seus jogadores preferidos. A palestra que se seguiu a esse Crystal Palace-Man. United que terminou 1-1, contada por Gary Pallister e confirmada por outros jogadores, roça o hilariante. Ferguson estava furioso porque a equipa, reduzida a 10, conseguira adiantar-se no marcador (David May, 57’), mas permitiu o empate aos 80’, por Gareth Southgate (mais tarde seria selecionador de Inglaterra). De mangas arregaçadas e a «fumegar das orelhas», a bílis veio à boca. Voaram os copos de chá, as sandes e tudo o que havia pela frente, Pallister foi acusado de «não ganhar uma bola de cabeça», Paul Ince andou «perdido». «E Sharpie [Lee Sharp]: a minha avó corre mais que tu!». «Amanhã vou arrancar-vos os tomates no treino, logo pelas 9 horas», prometeu. E quando chega a hora de dizer algo a Cantona: «Não podes andar a fazer coisas dessas, filho.»

O rufia da bancada

Eram muitas justificações para esse tratamento privilegiado. Cantona foi um dos melhores jogadores da história do Manchester United e seguramente um dos mais icónicos. Quanto ao ato tresloucado, foi tido em conta por grande parte da opinião pública o lado bully (rufia) do provocador, um personagem psicótico que podia ter saído do clássico Trainspotting que estrearia no ano seguinte. Segundo afirmou  Cantona em tribunal e mais tarde confirmado por testemunhas, Matthew Simmons, 21 anos, chamou de tudo do gaulês. E da mãe do gaulês. Com óbvia conotação chauvinista. Tanto que viria a ser acusado em tribunal de provocar o jogador, sendo condenado a uma multa de 500 libras e um ano de suspensão dos estádios ingleses. Irado, atirou-se, em plena sala de tribunal, ao advogado de Cantona e ao procurador Jeffrey McCann (que se reformava após esse caso), apertando-lhe o pescoço e mordendo a mão de um dos guardas que veio em auxílio.

No dia em que Cantona regressou ao local do 'crime' teve uma mensagem de boas-vindas (Foto: IMAGO)
No dia em que Cantona regressou ao local do 'crime' teve uma mensagem de boas-vindas (Foto: IMAGO)

«Estou inocente, juro pela bíblia», afirmou o adepto, que viria a passar uma semana na cadeia pelas agressões. 16 anos depois, Simmons viria a ser notícia por agredir violentamente Stuart Cooper, o treinador da equipa do seu filho, por deixá-lo no banco a partir do momento em que, alegadamente, soube quem era o pai. E por ser grande admirador de Cantona. Várias escoriações e um olho negro foi o diagnóstico, 150 horas de trabalho comunitário foi o castigo para o bully.

«Foi por isto que nunca me arrependi de ter dado aquele pontapé», disse o francês, em entrevista à revista inglesa Four Four Two, ainda como jogador do Manchester United. «Tive grandes momentos na minha carreira, mas pontapear um hooligan foi seguramente um dos melhores. Este tipo de pessoas não deve entrar nos estádios. É um sonho para muitos poder dar um pontapé neste tipo de gente, não é algo que se veja todos os dias», disse. Em boa verdade, arrepende-se de algo: «Tive pena de não lhe ter dado com mais força.» Anos mais tarde e já depois de terminada a carreira, reconheceu que os nove meses de suspensão foram de «aprendizagem», mas nunca se arrependeu do que fez.

«Aquilo de que me arrependo»

A tese da reciprocidade funcionou. Ao ponto de se ter transformado numa arma de marketing. A toda-poderosa Nike realizou um anúncio onde se ouvia Cantona a assumir «erros» e um «comportamento inaceitável», dando exemplos: «Só marquei um golo nos 5-0 ao Manchester City, falhei uma grande oportunidade frente ao Newcastle e só consegui bisar na final da FA Cup de 1994.»

Cantona apontando um golo ao FC Porto de Paulinho Santos na Champions de 1996/97 (Foto: IMAGO)
Cantona apontando um golo ao FC Porto de Paulinho Santos na Champions de 1996/97 (Foto: IMAGO)

Com o tempo, o agressor tornou-se vítima. Ou pelo menos o tipo bom da história. Porque o que se seguiu aumentou o grau de empatia. No primeiro jogo após a suspensão, em outubro, marcou um penálti no empate a uma bola com o Liverpool e na celebração simulou que ia saltar para a bancada. Cantona gerava uma empatia natural: idolatrado pelos adeptos do Man. United e admirado um pouco por todos os adversários graças ao génio que lhe saía nas botas pretas e do colarinho alçado.

Os factos não mentem: nas cinco épocas em que representou o atual emblema de Ruben Amorim, Éric Cantona só não foi campeão no ano da suspensão. 185 jogos e 82 golos parece pouco para quem fez tanto porque nos anos 90 não havia tantos jogos e tantas competições, mas a única coisa que os adeptos do clube lamentam foi a sua retirada precoce dos relvados, aos 30 anos, em 1997, dois anos antes da conquista da Champions no Camp Nou, frente ao Bayern, na final mais dramática de sempre da prova - como se tudo na história do Manchester United fosse feito de extremos: um desastre aéreo que se seguiu à grande conquista frente ao Benfica, em Wembley, em 1968; uma hegemonia conquistada depois de quase 15 anos de decadência, construída por um escocês de têmpera difícil mas capaz de atingir a excelência na gestão de um balneário de personalidades fortes. Como a de Eric, the King, um avançado que não bateu recordes estatísticos mas que será sempre recordado como um dos grandes magos da bola. E dos mais loucos também: aquele que naquela noite fria em Londres, depois de pontapear um hooligan em Sulhurst Park, só pediu desculpa a uma pessoa: à prostituta que teve de partilhar a cela com ele.

Cantona erguendo a última taça referente à Premier League, em 1997 (Foto: IMAGO)
Cantona erguendo a última taça referente à Premier League, em 1997 (Foto: IMAGO)