«Uma Viagem à Índia» de Gonçalo M. Tavares (artigo de Manuel Sérgio, 349)

Espaço Universidade «Uma Viagem à Índia» de Gonçalo M. Tavares (artigo de Manuel Sérgio, 349)

ESPAÇO UNIVERSIDADE27.08.202023:47

Empresa de enorme envergadura  esta – a de fazer Uma Viagem à Índia.  Para fugir deste nosso mundo onde “todos os dias morrem deuses”? Porque o movimento pode ser salutar e transmitir-nos uma inesperada pujança física? Porque se torna necessário mudar, para ver e fazer e pensar coisas novas? Porque viver não é só durar e por isso viver é mais do que viver, deve ser movimento em favor do humano? Nenhuma cultura deve monopolizar o universal e portanto pode ou não descobrir-se no movimento a contestação à hegemonia de certos interesses? Porque, ao longo e ao largo da Evolução, como aprendi com Pierre Teilhard de Chardin, “a matéria destila espírito”? Para José Tolentino Mendonça, “a experiencia da viagem é a experiência de fronteira e do aberto , de que o homem precisa para ser ele próprio. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta  e da construção de nós próprios e do mundo. É a nossa consciência que deambula, descobre cada detalhe do mundo e olha tudo de novo como da primeira vez” (Uma beleza que nos pertence, Aforismos, Quetzal. Lisboa, 2019, p. 147). Com intenção didática, diz-nos Eduardo Lourenço, no prefácio deste poema-romance, da autoria de Gonçalo M. Tavares, que a Caminho editou, em 2010: “ O dispositivo de Uma Viagem à Índia é o de um poema provocantemente épico e anti-épico (…). A sua viagem não desconhece  todas as outras viagens já feitas. Sabe-se outra como a de Camões se desejou”. E continua ainda o filósofo: “Para nós, todas as viagens são viagens à Índia”. E, como viagem, trazendo consigo promessa. E, se o tema escolhido por Camões, para Os Lusíadas, foi a História de Portugal, Bloom, “o seu tão célebre e literário herói não contempla (…) a face de Deus ou as pegadas de Deus, que no espelho da Índia imaginava contemplar. Mas não volverá o mesmo. Agora já sabe o que pressentia. Que não viajamos para nenhum paraíso. Que todas as viagens são sempre um regresso ao passado de onde saímos” (pp. 14/15).

Tenho na memória  a definição de teologia do teólogo Alexandre Palma, professor da U.C.P.: “a teologia é o campo do saber onde se interpreta e exprime criticamente como o humano representa o divino e se representa a partir dele” (Porquê a teologia?, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 37). Qualquer pessoa (mesmo sem os excecionais dotes literários do Gonçalo M. Tavares) é ciência e sabedoria, é memória e profecia, é, usando as palavras de Marx, na Crítica da filosofia do direito de Hegel (1844) “consciência de si e sentimento de si” – sentimento que, desmesurado, chega a ser alienação. Mas os humanos são seres dotados de consciência reflexiva e crítica e assim, quando reduzidos a objetos, pelo utilitarismo egoísta, arvorado em base da construção societária, ou por uma ideologia fortemente integrista e conservadora, ou por quaisquer outras razões de índole psicológica tão-só – os humanos, nestas condições, despertam e, como no regresso de Bloom a Lisboa, “nenhum ódio o recebe e nenhum amor” (Uma Viagem à Índia, p. 452). É um “eterno retorno”. Assim parece: “Mas um homem resiste, faz parte / dos seus deveres de animal. Mesmo entediado / há instintos que não abandonam o organismo / (…). Procurou o Espírito na viagem à Índia, encontrou a matéria que já conhecia. / Nada agora o faz hesitar; animais bem- -comportados / e agarrados por coleiras a árvores ladram / quando ele passa.  / Os sapatos avançam, fuma um cigarro / entra num café e pede um copo de vinho 7 (…). Olha em redor: ninguém o conhece. / Olha para um espelho: quem é este? / (…). Mas o frio aumenta  e Bloom não sabe para onde ir. / A ingenuidade é irrecuperável. / Bloom está em cima de uma ponte alta / e a noite esconde / os sapatos pretos. Nenhuma excitação / no homem que regressou ao ponto de partida. / Há várias maneiras de um corpo se matar / e cair do alto sobre a água é uma delas. / Uma mulher, entretanto, aproxima-se. / Bloom vira a cabeça: é uma mulher bonita que sorri”. (pp. 455/456).

E, como se de uma aparição bíblica se tratasse (os exemplos abundam, a dificuldade está na escolha) ela pergunta-lhe (num sussurro sereno, doce, assim o penso): “Não quer conversar? (…). Ele aproxima-se da mulher e o mundo prossegue, / mas nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de / Bloom, o nosso herói” (p. 456). Alexandre Palma volta criticamente ao tema: “a teologia é esse exercício intelectual onde se manifesta e diz, onde se interpreta e pensa, o que crentes (comunidades e indivíduos, nas mais variadas expressões religiosas) entendem do seu éthos e práticas: aquilo que são e aquilo em que crêem” (p. 37). Bloom partira de Lisboa, rumo à Índia, onde “procurava uma alegria nova / ou, se possível, várias. Alegria que misturasse prazeres / de animal doméstico alimentado em prato / com os de animal selvagem e bruto que se alimenta / dos ataques imprevistos que na floresta faz às vítimas / mais fracas. Um tédio surpreendente, / eis o que Bloom procurava. Como o encontrar?” (p. 52). Se é verdade o parergo de Santo Agostinho, “Deus intimior intimo meo” (traduzindo: “Deus é mais íntimo a mim do que eu sou a mim próprio”) por que será que a Índia e a sabedoria estão sempre tão longe, tanto na ebulição das cidades, como na paz inalterável dos campos? Por que será que a Índia e a sabedoria estão sempre tão longe, quando o mundo se globalizou e unificou? Porque não bastam a tecnologia e o mundo digital e as perspetivas que com eles se abrem, para o estímulo primacial da criação de uma alma, para um mundo sem alma. Espinoza (1632-1677) tentou uma explicação racional da Vida e da História, através da sua Ethica more geometrico demonstrata. Husserl (1859-1938) procurou instaurar a fenomenologia como ciência de rigor. Em ambos, ética e racionalidade coincidiam. Mas é possível humanizar, fazendo da Razão o instrumento único?  Do projeto logocêntrico da modernidade podemos colher a lição seguinte: mesmo com a revolução copernicana, mesmo com o esquecimento da teoria aristotélica do movimento, adotada pela Igreja como dogma de fé, mesmo com o triunfo da razão, a humanização continua por realizar-se. Bloom voltou da Índia, embaraçado de tédio, abulias e debilidades. E, assim, por que o logos suplantou o mythos?...

Na sua Viagem à Índia, “Bloom ouviu histórias, / leu sete mil livros, conheceu homens / e mulheres, viu e tocou em mais de dois mil / objectos diferentes; e agora quando anda, / não pensa em nada. / Voltou a Lisboa. É o fim do dia / tem uma bengala e uma velha que / parecem conhecê-lo: Boa tarde, dizem. Mas Bloom tem medo, / pressa e o estômago quente; o azul do céu é limpo / por uma cor preta que começa. / O tecto do país tem hábitos: anoitece” (p. 454). Cada um de nós, na Viagem à Índia que encetou, manifesta dois tipos fundamentais de experiência: a mensurante e a vivida. Aquela supõe o predomínio da ciência moderna ou, como Jorge de Sena o refere, num livro que é uma coleção de artigos seus, Maquiavel e outros estudos (livraria paisagem, Lisboa, 1974) “o triunfo cultural das classes artesanais da burguesia urbana” (p. 62); nesta, no campo das ciências hermenêutico-humanas, as medições são em geral de natureza estatística, quero eu dizer: medem-se tendências, médias, expectativas. Em ambos os casos, medem-se valores. Só que, na experiência mensurante, desponta a crença absoluta na razão, como nos trabalhos de Copérnico, Bruno, Tycho Brahe, Kepler e Galileu, todos figuras decisivas na história do conhecimento científico: e, na experiência vivida, importa que se conheça antes a natureza da razão, diante da natureza do mito. Diz Pierre Grimal , reputado estudioso da mitologia grega: “O mito se opõe à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra. Logos e mythos são duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito. O logos, sendo uma argumentação pretende convencer; implica, no ouvinte a necessidade de formular um juízo (…). Mas o mito tem por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se nele, ou não, conforme a própria vontade, mediante um ato de fé, caso pareça belo, ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar” (A Mitologia Grega, Brasiliense, S. Paulo, 1967, p. 8).  E assim finda a Viagem à Índia: “Ele aproxima-se da mulher e o mundo prossegue, / mas nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de / Bloom, o nosso herói”.

Uma Viagem à Índia constitui-se como um dos livros fundamentais da nossa literatura, eu digo mesmo: da literatura universal. Vivemos os tempos de uma vida sem sentido, de um itinerário sem projeto, de uma globalização-massifificação sem a “cor-agem” de romper com o círculo fechado dos seus interesses  . Mas, simultaneamente, gloriosos, porque um apelo a que o ser humano se cumpra na experiência da sua liberdade, na grandeza da sua transcendência. “Quais as consequências mais imediatas de tomar consciência da transcendência? Porque transcendência não é algo que temos ou não temos. Todos têm. Transcendência não se ganha, não se perde, é uma situação do ser humano que foi condenado a viver essa dimensão, a violar os interditos, a superar os limites. Esta é a sua estrutura, é a sua singularidade, no processo cosmogénico, no conjunto dos seres” (Leonardo Boff, Tempo de Transcendência,  Sextante, 2000. p.66). Recordo as palavras de Sartre (L’Existentialisme est un humanisme, Ed. Nagel. Paris, 1946: “L’homme n’a aucun appui et sans aucun secours est condamné , à chaque instant, à inventer l’homme”. Enfim, o existencialismo tentou resolver o problema do homem e da vida, tomando como ponto de partida o homem concreto e vivente mas… sem a transcendência, como a entende Teilhard de Chardin: “A Evolução é uma subida para o Espírito”. De facto (continuo com o autor de O Fenómeno Humano), a partir do Homem, a hereditariedade deixa de ser principalmente cromossómica, ou seja, veiculada por genes, e torna-se, sobre o mais, noosférica, isto é, transmitida pela cultura, pela educação, pelo meio ambiente. Sartre admite que o Homem é fundamentalmente o desejo de ser Deus. Mas a radical desteologização do seu pensamento descamba no ateísmo, quero eu dizer: no absurdo e no tédio de uma vida sem sentido. Bloom assim findou a sua viagem à Índia: sem sentido! De facto, nem tudo o que os cientistas dizem do universo é ciência. Por isso, também para muitos deles, o universo é ilógico. Uma Viagem à Índia – uma grande saudade de Deus, numa obra literária com todo o esplendor da imortalidade!

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto