Sociedade, Desporto e Racismo (artigo de Vítor Rosa, 143)

Espaço Universidade Sociedade, Desporto e Racismo (artigo de Vítor Rosa, 143)

ESPAÇO UNIVERSIDADE09.03.202108:08

Sociedade, Desporto e Racismo (artigo de Vítor Rosa, 143)

O sociólogo francês Jean-Marie Brohm é o fundador de uma “sociologia crítica e radical do desporto”, que rejeita, irremediavelmente, a competição, sinónimo de violência, exploração e alienação, que conforta as relações sociais de produção numa sociedade dividida em classes. Consentir as regras da prova desportiva leva a aceitar as regras de dominação capitalista. A competição e o seu espetáculo levam a que as massas esqueçam os seus próprios interesses, servindo a dominação. O desporto é, assim, o “ópio” do povo, tipo de força narcótica, “clorofórmio” das massas “cretinizadas” pelo seu espetáculo. O autor denuncia, várias vezes, com um tom cáustico, que são “confrontações imbecis entre músculos”, “a dramaturgia digna de um romance”, com funções de “cretinização de massas” e de “encarceramento dos espíritos”.

Outro modelo teórico é o de Alain Ehrenberg e o de Christian Bromberger. Para Ehrenberg, praticar desporto significa ir à conquista da sua identidade. A competição é muito igualitária. Existe confronto, mas com armas iguais. Exaltando o mérito, a competição não é uma porta aberta ao fascismo, como refere Brohm, mas uma metáfora da justiça em democracia. Este modelo é afinado por Bromberger. No fundo, passa-se de um mundo muito negro (o de Brohm) para um modelo cor-de-rosa (o de Ehrenberg e Bromberger). Os dois modelos não oferecem manifestamente a mesma visão do mundo, em geral, e do deporto, em particular. Passa-se de uma sociologia crítica da dominação desportiva a uma sociologia muito volátil, despolitizada e ingénua.

Socialização, inserção ou integração e catalisador de coesão social são algumas das funções do desporto. A Comissão Europeia definia, na década de 1990, cinco funções específicas no âmbito do desporto: 1) A função educativa para equilibrar a formação e o desenvolvimento dos indivíduos em todas as idades; 2) A função de saúde pública no quadro do bem-estar geral da pessoa para preservar o “capital-saúde” dos cidadãos; 3) A função social para lutar contra a exclusão, a intolerância, a discriminação e o racismo; 4) A função cultural, permitindo ao cidadão de se reconhecer no seu território; 5) A função lúdica como componente do tempo livre e do lazer individual e coletivo. A declaração do Conselho da União Europeia, de 05 de maio de 2003, refere que o valor social do desporto, sobretudo para a juventude.

Se a função social do desporto é reivindicada desde a origem dos discursos humanistas, admite-se que a problemática da prevenção e de inserção social no e pelo desporto surge no início dos anos 1980. Desde essa altura, múltiplos programas têm sido aplicados e apelam às práticas desportivas para favorecer a integração, em particular de jovens desfavorecidos ou oriundos de bairros e/ou cidades reputados(as) de “sensíveis” ou “difíceis”. É uma forma de reação social ao famoso “mal dos bairros”, que é julgado como responsável pelo aumento da violência, de roubos, de tráfico de estupefacientes e de outras degradações dos bens públicos e privados. Muitos dos programas e projetos desportivos desenvolvidos, quer em Portugal, quer no estrangeiro, adotam títulos como “inclusão”, “integração”, “inserção”, “socio-desportivos”, “de prevenção”, “de socialização”, “de educação” no e pelo desporto. Esta escolha terminológica sublinha a dificuldade de se nomear o “público-alvo” (os jovens de origem estrangeira, os jovens saídos da imigração, os jovens de bairros sociais, os jovens em dificuldade, os jovens difíceis) e os territórios abrangidos (bairros “problemáticos”, “sensíveis”, de exilados). Na realidade, a escolha terminológica confirma a incapacidade recorrente de se reconhecer o problema identitário desses jovens e de os acompanhar num eventual processo de integração ou de inserção e de se assegurar o desenvolvimento equilibrado do território.

Uma outra que se pede ao desporto é que ele combata o racismo. A questão racial, no contexto português, está intrinsecamente ligada com a relação existente entre o passado colonial da nação e as migrações contemporâneas. A política portuguesa de não recolha de dados sociais baseados na autoidentificação racial ou em origens étnicas de sua população, dificultam a realização de estudos sobre o assunto e seus impactos sociais. Em geral, o que se faz é uma extrapolação dos dados sobre pessoas que apresentam nacionalidades dos PALOP, apesar de muitos negros já terem nascido em Portugal, possivelmente de pais com a nacionalidade portuguesa. Essa falta de clareza dos dados acaba por prejudicar a implementação de políticas públicas para resolver problemas, tal como o insucesso escolar de jovens negros.

Assim, os negros em Portugal acabam sendo alvo de classificações das quais nem sempre se sentem representados. Muitas vezes nascidos em Portugal, sem nunca terem saído do país, são constantemente vistos como estrangeiros, migrantes e raramente como cidadãos nacionais. Tendo ou não dupla nacionalidade, a narrativa que se constrói em torno da população negra faz referência constante às suas origens familiares e étnicas, são os afrodescendentes, luso-cabo-verdianos, luso-angolanos, etc. O mesmo acontece para negros que representam a seleção nacional. Durante o período colonial, muitos atletas de Moçambique, Angola, Guiné e Cabo Verde vieram para a metrópole. Um exemplo emblemático da importância desses para o desporto nacional é o dos jogadores de futebol que compuseram uma parcel significativa dos que defenderam a seleção portuguesa ao longo dos anos 1950 e 1960, em variados torneios internacionais.  A hierarquização racista estipulada legalmente durante o colonialismo do século XX, previa o estatuto de “assimilado” aos africanos culturalmente “europeizados” dos territórios coloniais de Portugal, tendo permitido a sua presença na seleção nacional. Entre eles, Matateu que jogou pela primeira vez na seleção portuguesa em 1952, assim como Hilário, do Sporting, que jogou pela seleção quarenta vezes, e o mais célebre dentre todos, o Eusébio.

Se, por um lado, o sucesso de negros no campo desportivo pode contribuir para o argumento da superação da segregação racial, por outro a forma como esses atletas são retratados acabam reforçando visões, muitas vezes, racistas. O tipo de linguagem, adjetivação e caracterização (com base na força física e não na inteligência, com base no talento natural e não como capacidade de trabalho) possuem uma história e podem representar visões estereotipadas e racistas, mesmo que no relato da vitória ou de casos de sucesso. Com posições com clara influência nas teorias luso-tropicalistas, ainda é possível notar a presença de traços discursivos do colonialismo português e da segregação racial.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa

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