Espaço Universidade Judo desportivo versus judo marcial (artigo de Vítor Rosa, 150)
As artes marciais são formas de luta corpo a corpo, com ou sem armas, normalmente de origem oriental (japonesa, chinesa, coreana, vietnamita, etc.). Recorrem a técnicas eficazes. Ou, pelo menos, os praticantes convencem-se e são convencidos de que assim é. As condições atuais são muito diferentes das que deram origem às artes marciais. No entanto, são um património cultural muito interessante. As motivações para se praticar uma arte marcial difere consoante os indivíduos. Para uns, é a procura do bem-estar físico e psicológico, para outros é a autodefesa, embora muitos não o confessem abertamente. No caso dos jovens, são muitos os pais a obrigarem os seus filhos a praticarem uma arte marcial, convencidos que estão que ali vão aprender a defender-se. A defesa pessoal não é apenas um conjunto de técnicas para uma pessoa se defender de um ou de diversos tipos de ataques. É também um estado de preparação psíquica e física. Muitas demonstrações de artes marciais recorrem ao partir de tábuas e tijolos. Por vezes, surge uma rapariga franzina a defender-se de um ou mais matulões. Outro prato forte é a defesa contra facas, pistolas, etc.
As artes marciais constituem um espaço riquíssimo para o aperfeiçoamento humano, e como tal devem ser protegidas e recomendadas. Outra caraterística importante das artes marciais é a disciplina a que obriga os seus praticantes, refletindo-se positivamente nos aspetos da vida do dia a dia, como a regularidade nos estudos, no trabalho e na sociedade. Não há moedas só com caras. As artes marciais correm o risco de se confundir com fanatismo, “o que infelizmente não é tão pouco frequente como se possa pensar, na medida em que há ocasiões em que até pessoas de elevada categoria intelectual, parece perderem a noção da realidade e vivem uma espécie de idílio com o ‘mestre’, num sonho feliz mas de certo modo irresponsável”, como refere um documento interno da Comissão de Educação Física e Desportos das Forças Armadas, Defesa Nacional, de 22 de novembro de 1972 (processo 19.00).
Existe um elevado número de artes marciais, todas diferentes, ou pelo menos reclamando um espaço próprio: aikido, jujutsu, karaté, kendo, kung-fu, taekwondo, viet-vo-dao, yoseikan-budo, etc. Elas são fortemente hierarquizadas e os seus “mestres” são os detentores dos “segredos” da arte. A relação de “mestre-discípulo” prevalece. E apresentam caraterísticas autorreprodutivas, ou seja, os alunos ou discípulos mais avançados começam a auxiliar o “mestre” e, mais cedo ou mais tarde, temos novos mestres.
São muitas as definições de desporto, mas contemplam aspetos comuns: atividade lúdica organizada, com regras de competição bem definidas, onde o praticante põe à prova as suas capacidades em confronto consigo próprio, com o seu semelhante ou com a natureza. O aspeto organizativo é talvez a caraterística mais marcante, na medida em que condiciona a prática desportiva, em contraponto com a atividade livre e espontânea.
Numa sociedade de consumo, como a nossa, o desporto foi “absorvido” por essa máquina imensa e envolvente, subvertendo os valores morais e éticos. A organização associativa, federativa nacional ou internacional, até mesmo olímpica, é fruto da necessidade de regulamentar, coordenar e fomentar a prática competitiva das diferentes modalidades.
Mas existem muitas resistências. É o caso do judo desportivo e o judo marcial. No final da década de 1940 é fundada a Academia de Budo. Durante a década de 1950 deu-se o interesse pelo judo como desporto, levando à criação de uma federação de judo em 1959, a funcionar no Judo Clube de Portugal. Jogando com o interesse real da instrução de luta de defesa pessoal para as forças armadas, foi criada em 1960 a União Portuguesa de Budo (UPB).
De notar que por despacho ministerial de 30/07/1948, o judo foi excluído dos exercícios classificados como desportos. Mais tarde, por despacho ministerial de 04/09/1957, o judo é considerado como modalidade desportiva. Por um outro despacho, de 19/01/1959, é considerado que a prática do judo é de utilidade militar. Em 17/11/1959, vem-se a admitir a distinção do judo em judo marcial e judo desportivo e determina-se que o primeiro fique subordinado ao Ministério da Defesa Nacional e o segundo ao Ministério da Educação Nacional. No Diário do Governo n.º 37, da III Série, de 13/02/1960, é publicado o estatuto da UPB, a quem se comete o controle do judo marcial, sob fiscalização do Ministério da Defesa Nacional. É publicado no Diário do Governo n.º 245, da III Série, de 18/10/1962, o estatuto da Federação Portuguesa de Judo, que superintende no judo desportivo, subordinado ao Ministério de Educação Nacional. No Diário do Governo n.º 155, da I Série, de 02/07/1968, o Decreto-Lei n.º 48462, que atribui ao Departamento da Defesa Nacional o controle das artes marciais, excluindo o judo desportivo. E com o Diário do Governo n.º 76, da I Série, de 30/03/1972, o Decreto-Lei n.º 105/72, que criou no Departamento da Defesa Nacional a Comissão Diretiva das Artes Marciais (CDAM), com autoridade sobre o judo marcial.
Considera-se que o judo é um só, mas o espírito, marcial ou desportivo, é diferente. O judo é um conceito filosófico de vida, assimilado fisicamente através de um processo especial de luta. Na perspetiva do seu fundador, Jigoro Kano, o fim último do judo é inculcar na alma do homem um espírito de respeito pelos princípios de eficácia máxima de utilização do espírito e do corpo. Para alguns praticantes, o culto do judo como arte marcial é um desvio da filosofia de Kano. Para outros, o culto do judo como desporto é outro desvio da filosofia de Kano. Na nossa perspetiva, o judo deve ser considerado como um todo, onde se podem distinguir aspetos educativos, marciais e desportivos. Mas não tem sentido falar-se de judo marcial, judo desportivo ou judo educativo.
Vítor Rosa
Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa