Espaço Universidade Carta aberta ao nosso ‘bibota’ de ouro (artigo de José Neto, 147)
Meu queridíssimo Campeão dos Campeões:
Que as minhas palavras sejam capazes de se transformarem em notícias capazes de gerar uma afetuosa cumplicidade, para que possas regressar aos aplausos que ao longo do tempo o mundo do Futebol te prestou.
Lembro-me muito bem das imagens que marcaram um dos tesouros da minha existência, quando o nosso Mestre Sr. Pedroto me convidou a acompanhá-lo na época 1982/83 do Vitória de Guimarães para o palco dos sonhos, F.C. Porto.
Ao ser apresentado aos meus heróis que inúmeras vezes da arquibancada eu aplaudia, logo sobressaiu a tua imagem sóbria e serena ali à minha frente, absolutamente regenerada pelo eco de apoteótica felicidade quando um, outro e mais outro golo marcavas nas balizas dos adversários.
Uma das minhas primeiras tarefas a desempenhar tinha por objetivo, observar e qualificar o rendimento da equipa no sentido de valorizar de forma mais eficaz, pedagógica e científica o método de treino, baseado naquela histórica frase do nosso Mestre “Olha para o jogo que ele te dirá como treinar e … Olha para o treino que ele te dirá como deves jogar”.
Estabelecemos um registo que pouco tinha de ver com a simples anotação de números que serviam de estatística, mas fundamentalmente um apelo para a sua desproblematização, e aí a caracterização e evolução de competências que os rankings individuais e coletivos de sucesso o admitia.
No teu caso em especial a avaliação da leitura do jogo, a capacidade para a visualização e antecipação dos movimentos da bola, dos companheiros, da equipa e dos adversários jogando, e uma deslumbrante capacidade inteligível para melhor o perceber.
Pelo vigor dos circunstancialismos apresentados, descreveste a páginas de ouro duas épocas que pela superior expressão técnica, transferiste as eficácias dos remates nos golos que os estádios deste país aplaudiram.
Lembras-te da tua primeira Bota de Ouro (1982/83) com o registo de 36 golos em 3 zonas da área A1/3; A12; A6 com 4.7 remates 1 golo e 50% com preparação, 25% de cabeça e 25% sem preparação, acrescentando que nesta época te pertenceu 30% do total da equipa dos quais 22% deram origem a golo?
Lembras-te da tua segunda Bota de Ouro (1984/85) com o registo de 39 golos nas idênticas zonas da área com 3.6 remates 1 golo e idêntica percentagem referida no primeiro troféu, aumentando a percentagem de 33% do total da equipa, dos quais o aumento de 26% deram origem a golo?
Este o significativo perfil da imagem de marca dum verdadeiro campeão. Na história do Futebol jogado em Portugal, apenas dois atletas conseguiram este facto único e por vezes eclipsado, ter obtido a conquista de 2 Botas de Ouro e melhores marcadores do futebol europeu: EUSÉBIO E FERNANDO GOMES.
Depois, quando Artur Jorge, como líder da equipa técnica e Dr. Domingos Gomes como líder da equipa médica e a superior anuência da parte do nosso presidente Jorge Nuno Pinto da Costa, para além das funções de observador e análise do jogo, tive a grata honra de estabelecer a ponte entre a equipa médica e técnica, colocando em prática o que por demais fui contemplado no estudo na faculdade quer no âmbito da fisiologia, anatomia, biomecânica, treino desportivo, medicina desportiva, psicologia, etc , agora no âmbito do treino de recuperação de atletas lesionados e especificamente na personalização do treino para atingir uma plataforma de excelência competitiva, constituindo o F. C. Porto como muitas vezes atesto, a minha maior universidade.
Aí, com a infelicidade da tua grave lesão a 17 de maio de 1987, devido a uma fratura da tíbia e perónio, te fiquei a conhecer ainda melhor, mas mesmo muito melhor.
A experiência passada com este flagelo por demais exercida com outros colegas, nomeadamente as recuperações das pubalgias de Jaime Magalhães e Vermelhinho; dos ligamentos cruzados do Jaime Pacheco, Quim, Festas, Semedo, Zé Beto; das fraturas do Paulo Ricardo, André, Lima Pereira, Celso, Eurico, Laureta e outros, muito especialmente o “génio” Fernando Chalana (já referenciado em artigo anteriormente dedicado), quantas vezes com a marca sublinhada por certos “entendidos” duma despedida do Futebol, todos voltaram a jogar e a representar as seleções nacionais, levou-nos a acreditar que, apesar da tua amargura de não disputares a final dos campeões europeus Viena/87 e que tanto contribuíste para lá estar, ninguém nos roubaria a esperança de voltar a conquistar o futuro.
Esse estado de choque, frustração e luto pelo afastamento de hábitos que se convertiam em rotinas de treino, o clima de incerteza e dor que arrasava de forma tribal as expectativas criadas, fizeram com que nos envolvêssemos ainda mais numa partilha de solidariedade, esforço, dedicação, suor, emoção e paixão nas exigências e tudo isto se foi transformando num foco catalisador que jamais deixou de iluminar a nossa fidalga e emblemática forma de relacionamento.
Com momentos intervalados do descanso (?) em férias no Algarve, com duas sessões de treino diário, apuramos o registo de esforço nas exigências da sua evolução e conseguimos iniciar praticamente em plenitude a nova época com Mr. Tomislav Ivic e no envolvimento absoluto de em dezembro conquistares o título mundial de clubes no Japão.
Ainda nessa época 1987/88 quando alguém se atrevia a descrever em parangonas que “GOMES É FINITO” fiz a propósito a avaliação do teu rendimento em jogo e verifiquei os detalhes do teu esforço prestado quer no apoio ao meio-campo e por vezes zona defensiva em bolas paradas, atitudes de exigente liderança partilhada, capacidade concretizadora, espaço percorrido, interceção de bolas ao adversário, concluindo que GOMES ESTAVA VIVO E BEM VIVO.
Depois, bem depois surge mais um arranque à angústia de quem servia como capitão o emblema do F.C. Porto num fatídico processo disciplinar. Evitando fazer qualquer comentário sobre o caso, adianto, por natureza e dever da estima sempre justificada, o encontro mais uma vez em férias (?) no Algarve, agora acompanhado por Lima Pereira e Chalana e com mais um colega internacional do S.L. Benfica Álvaro Magalhães, advindo duma lesão de alta gravidade e que me solicitaram apoio para a sua total recuperação.
Dos relvados de Vale do Lobo e do ginásio Barrington, passamos para o Estádio Nacional. Quantas foram as vezes que a comunicação social te tentou interpelar com perguntas feitas a ferro e fogo, para tecer considerandos menos abonatórios contra o clube que, apenas profissionalmente (registe-se), nesse momento de nós não fazia parte. Testemunho que em vários colóquios perante questões “armadilhadas” dum desejo feito guerrilha contra o Clube, o nosso Bi Bota de Ouro, sempre pautou o seu discurso impregnado duma notável inteligência intelectual, expressando uma cadeia de exemplos de gratidão pelas pegadas duma experiência vivida, como um verdadeiro campeão repetido num temp(l)o e num espaço que para nós jamais deixou de ser sagrado.
Um cair de tarde aparece-nos o Presidente Sousa Cintra e a partir daí cavamos o nosso destino, tendo tu assinado pelo Sporting C.P. e eu segui a convite do meu/nosso príncipe da amizade, Vítor Manuel, para o S. C. Braga.
Mais tarde esse reacender da chama de transcendência clubista, eclodiu como trombeta a anunciar o teu regresso à causa das causas, justificada pela honra do dever prestado em o ter servido de forma exemplarmente inabalável, e na categórica expressão de amor pelo F. C. Porto, qual o júbilo por te ver regressar pela porta dum desejo ancorado na experiência dum atleta de eleição, duma pessoa de um sentimentalismo transbordante, dum líder exemplarmente digno e no carater dum homem bom.
Nesta hora meu querido Fernando Gomes, que desesperas pela expectativa de nova entrada em campo, tu que passaste pelas honras das glórias cantadas em hossanas, pelo infortúnio dum desespero por turbilhões incompreendidos, pela inclemente e surpreendente partida de um dos teus anjos da guarda, pela hercúlea tenacidade de ver afastada a dificílima assunção dum impiedoso estado de saúde, sabes bem que só quem passa pelo desespero das dificuldades encontradas é que está mais disponível a ir ao fundo da alma e sacar o que lhe resta… e na força do teu desejo ainda poderás transformar cada passo numa valente caminhada.
Agora como outrora, também sabes que por entre o eco que escapa do meu silêncio há sempre um olhar, uma voz, que num cultivar de memória por um tempo passado, onde repousam as recordações feitas saudade, um tempo presente onde se alicerçam as convicções feitas desejo e um tempo futuro onde pode eclodir uma generosa e jovial esperança … SEMPRE ESTAREI CONTIGO DE CORAÇÃO NO CORAÇÃO. Zé Neto
José Neto: Metodólogo de Treino Desportivo; Mestre em Psicologia Desportiva; Doutorado em Ciências do Desporto; Formador de Treinadores F.P.F./U.E.F.A.; Docente Universitário - Universidade da Maia; Embaixador Nacional para a Ética e Fair Play do Desporto.
*artigo inicialmente publicado a 16 de outubro de 2022.