REPORTAGEM A BOLA Neste recreio todos os dias há Jogos sem Fronteiras
Na Escola n.º1 de Lisboa, são os jogos no intervalo que ajudam à inclusão dos alunos, oriundos de… 16 países
A campainha toca. Mas é o ‘Hino à Alegria’ que parece soar e não o som estridente e metálico habitual. Porque cada saída para o recreio da Escola n.º 1 de Lisboa é como se fosse a abertura para uma nova edição dos Jogos sem Fronteiras.
É verdade que ali, em Arroios, não há Eládio Clímaco. Mas nem nomes incomuns faltam por lá.
Do Paquistão temos o Jibran, ou a Zurriyyat! O Suprajeet vem do Nepal e o Nawaf do Bangladesh. A Na chega do Vietname! De São Tomé e Príncipe está lá hoje a Enezenaide. «Até o jornalista que nos visita tem um nome pouco habitual», sublinha a professora Teresa Pais nas apresentações.
Mas mais do que nomes, há ali diferentes nações! Aliás, nesse aspeto, o recreio até é mais semelhante a outros Jogos. Os Olímpicos, que a escola assinala no dia em que a reportagem de A BOLA volta à escola por umas horas.
Unidos para lá dos muros, temos representantes da Alemanha. E do Peru. Da Roménia. Do Brasil. Da Guiné-Conacri. E da Rússia. Do Bangladesh. Da Índia. Da Guiné-Bissau. De Israel. E do Senegal. De Angola. Do Paquistão, Nepal e Vietname, como referido anteriormente. E de Portugal, pois claro.
Um. Dois. Três. Quatro… dezasseis. São 16 as nacionalidades que se juntam no recreio da Escola N.1, onde os portugueses são a maior comunidade, ainda que 52 por cento das crianças sejam estrangeiras.
Mas esses são números para os adultos. As crianças nem reparam nisso. São crianças. E com maior ou menor dificuldade na comunicação, brincam todas juntas, intervalo após intervalo. Brincam apesar das nacionalidades diferentes. Brincam, sobretudo, apesar das histórias que cada uma arrasta atrás de si.
«No Paquistão não há recreio»
Na mais antiga escola de Lisboa, fundada em 1875, o dia é especial. E a hora do recreio é mais longa do que o habitual. Ibrahim, de repente, torna-se no centro das atenções. É aquele menino de 10 anos, um palmo mais alto do que quase todos, quem assume o protagonismo no momento de explicar aos convidados quais as regras do críquete.
Mas só aos convidados. Os colegas da escola já conhecem bem aquele desporto que é rei no Paquistão, de onde vem Ibrahim, na Índia e que é muito apreciado também noutros países da Commonwelth, como a Austrália, África do Sul, entre outros.
O críquete, que começou a jogar-se bastante no recreio da Escola N.º 1, como explica Márcio Policarpo, professor de Educação Física. «Confesso que não estava bem por dentro da modalidade. Mas ter tantos miúdos que gostam, acompanham, e que insistiram para termos nas aulas, fez com que fosse procurar saber mais sobre o críquete», revela.
E ainda bem que o fez. Não somos nós que o dizemos, mas sim o reflexo do que vemos. No ‘Dia Olímpico’ o críquete foi um dos jogos que as crianças da escola escolheram ter no recreio.
«No início as outras crianças estranharam, como tudo o que é novo. Mas foi giro depois vê-los a começar a pedir aos pais para comprar tacos para poderem jogar», completa a professora Paula Ribeiro.
Daí a importância de Ibrahim, que até deixou de ir ver um jogo da Índia contra os EUA naquele dia, por saber que era fundamental para explicar as regras daquele desporto ainda estranho por cá.
E aquele menino de 10 anos fá-lo com a mesma naturalidade como a que aborda a forma como chegou a Portugal, há dois anos. «Vim com os meus pais e os meus irmãos, um de oito anos e outro de dois e meio. Viemos como emigrantes fugidos».
Refugiados. É isso que Ibrahim quer dizer. Mas o que ele sabe é que são emigrantes porque tiveram de fugir.
«Na minha cidade, só num mês roubaram 38 crianças. Trinta oito meninos e meninas desapareceram das famílias. Tivemos de vir embora», descreve tranquilamente, enquanto bebe um pacote de leite, ansioso por voltar para o campo, que, entretanto, voltou a ser de futebol, outro desporto que ele também adora.
«Sabes que 70 por cento das bolas de futebol de todo o mundo são feitas no Paquistão?», atira a meio da conversa.
Aproveitamos a deixa para regressar com ele aos tempos de escola do país onde Ibrahim nasceu. Mas a visita é breve. «Lá não há recreio como aqui. E as aulas são diferentes: os professores deixam os materiais e as crianças vão brincar. Joga-se críquete, hóquei na areia e também futebol e às escondidas», recorda.
«Quero jogar na Seleção de Portugal»
Suprajeet é uma das crianças mais entusiasmadas com o críquete. Mas os professores de Educação Física garantem que ele se destaca mesmo é… no futebol.
Chamamos aquele menino com uma provocação: «Ouvimos dizer que és o melhor jogador de futebol do Nepal…».
A resposta desarma-nos num instante. «Não é verdade. O meu irmão joga melhor do que eu», devolve-nos com a inocência dos seus sete anos. O português de Suprajeet já o denunciava, mas ele depois confirma: «Eu já nasci em Portugal. O meu pai é que é do Nepal.»
Filho de um intérprete, ele até pode estar dividido no que diz respeito à comunicação, uma vez que fala nepalês em casa e português na escola, mas no que diz respeito às preferências desportivas nem há dúvidas.
«O meu pai jogava críquete no Nepal e eu até gosto, mas prefiro futebol. Jogo na equipa do Olivais Sul e quando for grande, se treinar bem, vou jogar na Seleção de Portugal», perspetiva.
E se essa ideia já habitava a cabeça do menino de origem nepalesa, mais força terá ganhado com o exemplo dado nesse dia por Enezenaide, que é a visita especial no recreio naquele dia.
E será normal se o nome não disser muito ao público. Mas apostamos que se o abreviarmos para Naide e acrescentarmos o apelido Gomes, tudo mudará de figura. Porque não é só um nome diferente que a antiga atleta olímpica portuguesa tem com algumas daquelas crianças.
«Eu nasci em S. Tomé e Príncipe e vim para Portugal aos nove anos. A minha família veio em busca de melhores condições, como muitas das vossas fizeram. Vim estudar e foi num dia aberto que um professor me viu a saltar e me convidou para ir para o atletismo», contou a ainda recordista nacional do salto em comprimento, do salto em altura e do heptatlo, que foi duas vezes campeã do mundo e outras tantas a melhor da Europa.
Não pode o Suprajeet sonhar? Mais do que poder, deve. E se precisar de recomendação até pode contar com Lourenço, outro dos meninos que brilha no pátio na hora do futebol.
«Ele quase é melhor do que eu. E é um menino do 2.º ano e eu sou do 3.º. Mas eu também sou melhor do que alguns do 4.º ano», ressalva, ele que garante gostar de todos os jogos que se fazem no recreio.
«É pelos jogos que se faz a integração»
Todos os jogos. Repetimos a ideia porque neste recreio não se joga apenas futebol e críquete. Há também o tradicional “mata-piolho”, muito apreciado por todos. E ainda a “amarelinha”, um jogo semelhante que foi ensinado por uma aluna do Brasil aos restantes colegas. Ou o “nhay lò cò kéo áo”, uma partilha do Vietname feita pela Na e que, garantimos, é muito mais fácil de jogar do que… pronunciar.
Ouvimos muitas vezes que «a linguagem do futebol é universal». Mas essa é uma verdade que não é exclusiva do chamado desporto rei. E um recreio tão diverso em termos de atividades é a melhor prova disso mesmo. Como assume Teresa Pais.
«Nas provas de aferição do 2° ano, a disciplina de Educação Física é aquela que obtém resultados de 100% na EB N°1 de Lisboa. Podemos dizer que nesta escola é através dos jogos e da atividade física que se inicia a inclusão dos alunos estrangeiros que não dominam a língua portuguesa», orgulha-se a coordenadora daquele estabelecimento inserido no Agrupamento de Escolas Nuno Gonçalves.
Uma ideia que é reforçada pela professora Paula Ribeiro. «Todos os desportos são importantes. E nós na atividade física somos privilegiados, até no que diz respeito às dificuldades em comunicar. Porque nem que seja pelos gestos e pela demonstração, fazemo-nos entender. E quando é mais difícil, os alunos que estão cá há mais tempo explicam aos outros», enaltece.
Poucas horas bastam para se perceber que neste recreio cheio de jogos de todo o mundo, as fronteiras são coisa que não existe. Por exemplo, apesar de falarem bem português, entre si a Zurriy e a Na optam por falar em inglês.
Mas é num português perfeito que a menina natural do Vietname nos chama à parte para mostrar um dos desenhos que fez. Aquilo que nos diz, porém, é claro em todas as línguas do mundo.
«Desenhei o planeta e as bandeiras de muitos países porque porque eu amo o meu planeta e todos os seus países».
E no nosso imaginário, regressa o “Hino à Alegria” para despedida. Com gente de todas as cores abraçada a festejar.