«O resultado das eleições no FC Porto foi tão clarificador que só nos pode unir»

A BOLA TV21.05.202409:17

O cardeal D. Américo Aguiar, Bispo de Setúbal, é um excelente comunicador e manteve, no Conselho de Estádio, um discurso vivo e inteligente, não fugindo a nenhum dos temas que lhe foram propostos. Falou da sua participação na vida do FC Porto, da forma como vê a sociedade atual e dos problemas que a Igreja Católica tem enfrentado. Um depoimento extraordinário...

VÍTOR SERPA (VS) - A primeira pergunta é um pouco irreverente: quando foi ordenado Bispo Auxiliar de Lisboa ofereceu a Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, um anel que representava a sua lealdade à cidade Invicta. No entanto, desde muito jovem, sempre se sentiu bem a criar pontes, na atividade política entre esquerda e direita, também entre aquilo que são as dicotomias entre Porto e Lisboa, e propunha-se fazer o mesmo entre o Benfica e o Futebol Clube do Porto. Pelo facto da lista ao Conselho Superior dos dragões, onde estava integrado, ligada a Pinto da Costa, ter sido derrotada - embora tenha sido eleito pelo método de Hondt - essa ponte vai ficar por construir?

- Em primeiro lugar quero felicitar A BOLA por esta renovação e reinvenção do seu projeto, tão familiar e tão próprio de Portugal e dos portugueses. O mundo da comunicação vive desafios e dificuldades em que só os melhores serão capazes de sobreviver. Aqui, como estamos com uma equipa de vencedores, a vitória está garantida. Quanto à sua pergunta, não entendo a participação na vida das instituições como derrotas e vitórias. Aliás, como Mário Soares dizia, só é derrotado quem desiste de lutar. Para mim, aquilo que significa a participação nos órgãos sociais do Futebol Clube do Porto, entre outras instituições, é muito positivo, porque torna possível fazermos escola daquilo que significa a partilha das ideias e projetos. Depois da decisão dos associados, o importante é que no dia seguinte voltemos a estar todos juntos, naquilo que é o processo de pertença à instituição. E isso é bom que aconteça no Futebol Clube do Porto. Aliás, rezo para que não aconteçam solavancos e coisas menos boas, que infelizmente aconteceram noutras instituições, ligadas ao futebol e a outras atividades. Acho que é muito importante fazermos escola de democracia, daquilo que significa ouvir o outro com atenção, respeitando-o, a concordar ou a discordar. E veja que em relação ao FC Porto, o resultado final das eleições foi tão clarificador, que só nos pode unir.

JOSÉ MANUEL DELGADO (JMD) - Consegue explicar a razão de um resultado tão surpreendente e desnivelado?

- Não fiquei surpreendido pelo desfecho, mas sim pela dimensão da vitória. Mas, por muito que possa parecer estranho, na tomada de posse e em tantos outros momentos, testemunhámos o carinho dos associados pelo presidente Pinto Costa, que é muito interessante. Estamos, pois, perante um resultado esmagador, mas clarificador, e ao mesmo tempo de respeito e carinho, mesmo que não pareça.

VS -Tratou-se de um voto na renovação?

- Exatamente. A esmagadora maioria dos associados e dos simpatizantes entenderam que era o momento de fazer esta mudança e esta conquista do futuro. Mas com respeito e com carinho, que é o que tenho notado em todos os momentos. Agora, é óbvio que, humanamente, para quem esteve envolvido mais diretamente será menos confortável.

«Mal seria se neste momento, algo que nos une, que é o FC Porto, passasse a ser motivo de zanga, na sequência de uma escolha livre»

JMD - Conta com alguma incompatibilidade no Conselho Superior?

- Pelo contrário. Aliás, mal seria que neste momento, algo que une, que é a cor do clube, passasse a ser motivo de zanga e divisão, na sequência de uma escolha livre.

JMD - Mas conhece a frase do Winston Churchill…

- … a de quando, com o neto, visitou o Parlamento e disse, ‘meu querido neto, aqui [apontando para a sua própria bancada] estão os inimigos, ali estão os adversários’. E o neto corrigiu-o, lembrando: ‘Avozinho, é ao contrário’, ao que Churchill reafirmou: ‘Não, não. Aqui são os inimigos, ali são os adversários.’ Fundamental é fazer escola. Estou convencido de que nos primeiros dias, relativamente à nova realidade do FC Porto, é como a Coca-Cola, primeiro estranha-se e a seguir entranha-se. O que é importante é que estas grandes instituições do país, o FC Porto, o Benfica, o Sporting e tantas outras, como o meu Vitória de Setúbal, que passa por dificuldades materiais, tenham consciência de que tudo isto é muito mais do que futebol…

VS - Poderá ser significativo o facto de um homem da Igreja participar ativamente na vida de um clube, ou até na vida política, com o entendimento de que se trata de um direito inalienável como cidadão?

- Compreendo a sua questão. Aliás, recebi muitos e-mails e muitas mensagens, algumas simpáticas e outras não, a que tentei responder sempre procurando entender o que as pessoas estão a dizer. Há quem ache que o bispo, o sacerdote, o eclesiástico, deve estar na sacristia, ou atrás do biombo. Para mim, ainda por cima numa sociedade que celebrou os 50 anos em democracia, isso é algo que não aprecio. E regressando ao Conselho Superior do FC Porto, trata-se de um órgão consultivo, que tem uma vantagem que me cativa: é formado por elementos das várias sensibilidades, como se fosse um pequeno Senado, onde ninguém fica de fora e é possível construir pontes.

JMD - O que ganha relevância perante o radicalismo a que assistimos em muitas circunstâncias…

- O apelo que faço às pessoas é que cada um, no tempo em que vivemos, que nos remete para um ambiente muito estranho, em volta das redes sociais, da guetização, da ideia de que só me dou bem com os que são da minha cor, ou ouvem a minha música, ou gostam do mesmo prato, tenha consciência de que tudo isto é grave e complicado.

JMD - É nesse contexto que ganham acuidade as palavras do Papa Francisco, ditas em Lisboa: ‘Todos, todos, todos.’?

- São de grande exigência os tempos que vivemos. Facilmente, atrás de um teclado, a coberto do anonimato, qualquer um se arma em herói. Mas são uns cobardes, escondidos no anonimato. Devemos fazer tudo o que pudermos para normalizar a participação de cidadãos nas instituições, sem ser ninguém contra ninguém. O pior que pode acontecer numa sociedade democrática, nos clubes ou nas instituições, é chegarmos a um ato eleitoral e não existirem candidatos. Ou não ser possível cada candidato manifestar ao que vem. Isso é que é grave. Aliás, lembro-me de Pinto da Costa dizer, várias vezes, em entrevistas, quando perguntavam sobre o sucessor, que o FC Porto não era nenhuma monarquia, e que os sócios, um dia, escolheriam.

DO BENFICA AO FC PORTO E AINDA PINTO DA COSTA

VS - Li que a sua primeira escolha clubística foi o Benfica. Isso aconteceu por que razão? Em relação ao FC Porto, percebe-se melhor, ter nascido em Leça e ter uma relação muito forte com o Norte e com a cidade do Porto…

- Até 2015, mais ou menos, fui simpatizante do Benfica. O meu pai era benfiquista, e há aquela parte que dá mais pica, que é estar numa terra onde se é ao contrário. Porém, em 2015, aconteceram duas coisas. Uma, a minha proximidade com o D. António Francisco, Bispo do Porto, que acompanhei várias vezes ao Estádio do Dragão, onde estive com Pinto da Costa. D. António Francisco era um portista muito ferrenho, de Lamego, e foi assim que ganhei contacto com o então presidente Pinto da Costa. E, acima de tudo, essa foi a questão, porque entraram em campo o afeto, a proximidade e a amizade. O futebol, por natureza, não é racional, é afeto, e coração, e creio que todos acreditamos nisto. Depois vim para Lisboa, para a Rádio Renascença, e fui a um ou dois jogos à Luz, onde começaram com cânticos a dizer mal do Porto.

JMD - Mas no Porto também ouve malhar em Lisboa…

- Sim, é o que acontece. Mas a seguir houve uma circunstância muito importante, que me marcou a mim e a Pinto da Costa, que foi a morte de D. António Francisco. Era Bispo do Porto há três anos e faleceu inesperadamente em setembro de 2017. Creio que, das figuras públicas da cidade, aquela das que mais sentiu a morte de D. António Francisco foi Pinto da Costa. E aqui voltámos à questão do afeto, da amizade, e passei a acompanhar mais de perto a pessoa, a ir aos jogos e tudo mais.

VS - Julgo que conheço razoavelmente bem Pinto da Costa, fui diretor de A BOLA durante 30 anos e ele foi presidente do FC Porto durante 42. Tivemos uma longa vivência juntos, nem sempre má, muitas vezes até francamente agradável. Pelo que está a dizer, sentiu-se tocado pela parte humana de Pinto da Costa, que envolve o nível cultural, o gosto pela literatura, a capacidade, inclusivamente, de ser sensível à poesia, que parece tão diferente daquela personalidade do presidente do Futebol Clube do Porto que queria ganhar fosse como fosse…

JMD - Um era o Jorge Nuno e o outro o Pinto da Costa…

- Eu conheço mais a pessoa. Há o presidente, com todos os seus anticorpos, mas quando se conhece pessoalmente e se acompanha naquilo que é a família, a privacidade, os medos, as limitações, as fragilidades, há uma relação de amizade que se vai construindo. Agora, de que é que eu também tenho consciência? É como São Paulo que se converteu ao cristianismo: os benfiquistas não gostam que um dos seus se converta ao FC Porto; e os portistas não gostam muito que apareça alguém que era benfiquista e diga que agora é do FC Porto. Portanto, é assim uma situação de sofrimento… Mas confesso-vos que não me incomoda absolutamente nada estar à mesa, ou noutro contexto qualquer, com pessoas que pensam diferente, com pessoas de clubes diferentes, acho que é uma riqueza termos a possibilidade de conviver, de aprender e de ser amigos. É difícil aprender se toda a gente disser a mesma coisa.

«Quando se conhece Pinto da Costa e se acompanha naquilo que são os medos, limitações, fragilidades, há uma relação de amizade que se constrói»

VS - Infelizmente não é isso que sucede no dia a dia…

- Tenho sempre dificuldade quando vejo nos clubes aquelas expressões mais radicais, os comportamentos violentos de um lado e do outro. Isso, confesso, não aprecio absolutamente nada. E faço tudo o que posso para sentir-me bem na Luz, no Dragão ou em Alvalade, junto dos dirigentes. Não tenho qualquer tipo de anticorpo. Há uma certa diplomacia desportiva se encontrarmos caminhos pacíficos, porque a luta deve ser apenas dentro das quatro linhas.

JMD - Eu diria que se conseguir essa aproximação, mais do que construir uma ponte, está a realizar um milagre. Esta nova geração de dirigentes dá-lhe alguma esperança de evolução no sentido certo?

- Eu acredito nesta nova geração, e não acredito só no Villas-Boas, no Frederico Varandas ou no Rui Costa. Vi, na tomada de posse de Villas-Boas, muita gente nova, que olha e faz as coisas de outra maneira, com respeito por todos. Acredito que ganhará o futebol, o desporto e o país se as novas gerações dirigentes puderem fazer coisas diferentes.

VS - Quando era jovem, a dada altura, foi puxado para a catequese pelos seus amigos e acabou por achar que ganhava mais na escola da vida, jogando futebol na rua. Mais tarde enveredou pela área da política e, aos 19 anos, já estava num cargo autárquico importante…

- Primeiro, devo reconhecer que era caixa de óculos e nunca fui um grande player de bola. Aliás, por essa razão, cheguei a frequentar duas ou três aulas na Associação Distrital de Árbitros, no Porto, mas fiquei desanimado porque o professor, que certamente era um árbitro, dizia-nos que não julgássemos que era como na televisão, que a arbitragem era uma atividade muito violenta e que íamos sofrer muito nos distritais. E eu, ao fim de três aulas, desisti. O certo é que tive sempre gosto pelo futebol, mas não como praticante direto.

JMD - De onde lhe chegou esse apelo pela cidadania?

- Muita desta minha cidadania ativa vem da formação de escuteiro. Eu era jovem, andava na catequese e desisti, influenciado pelo Vasco Granja, que tinha um programa de banda desenhada, na RTP. Achei melhor ir ver banda desenhada para a televisão, do que propriamente para a catequese. Depois passei a ser um aficionado do Tio Patinhas e dos sobrinhos dele, o Huguinho, o Zezinho e o Luisinho eram escuteiros. Logo que soube que iam abrir os escuteiros na minha terra, fui. E então disseram-me que tinha de ir para a catequese e eu lá aceitei essa obrigação e deu no que deu.

VS - Falta cidadania ativa a Portugal?

- Falta-nos qualquer coisa por onde passemos todos, que nos uniformize.

VS - Mas teve experiência política…

- Durante algum tempo acompanhei a juventude social-democrata. Depois trabalhei mais de perto com a juventude socialista. Ainda hoje tenho essa sensibilidade, que me leva a aceitar que a esquerda do PSD toque a direita do PS e vice-versa. Eu olho para as propostas dos vários partidos e sou capaz de fazer um self-service, um pacto que resolva os problemas das pessoas.

JMD - Tem essa visão para a Igreja, que deve ajudar a resolver os problemas das pessoas?

- Quando olhamos para Jesus Cristo, vemos que nestes dois mil anos muita coisa foi colocada às costas de ser cristão. Exigências, regras e normas. São muitas coisas e, de vez em quando, há um Papa que dá um abanão, cai tudo e ficamos mais leves. E eu acho que é o que estamos a viver com o nosso querido Papa Francisco. Estamos a viver um tempo em que há alguém que está no leme da barca, alguém que é o Pedro, mas neste caso se chama Francisco, que é sensível àquilo que é, como dizemos, o sopro do Espírito Santo, e que no tempo em que vivemos nos está a dizer o ‘todos, todos, todos’. Está a dizer que o meu amigo e qualquer outro amigo, que tem na sua vida uma circunstância diversa, e se sente atraído por aquilo que o Cristo lhe diz, não está excluído porque come brócolos, ou gosta de ervilhas, ou não sei o quê. Ou seja, essas coisas acidentais não podem nem devem ser um muro ou uma barreira que impeça o acesso à igreja e a Cristo. Mas é um caminho que temos de fazer, porque ao longo de dois mil anos houve sempre alguns que carregaram os outros com exigências.

VS - Estamos a assistir, realmente, a um tempo de mudança na Igreja?

- Na Igreja e em muitas áreas da nossa vida. Para bem e para mal estamos a viver no olho do furacão. É a revolução digital, é a questão da Igreja, é a questão dos mercados, é a questão da guerra. Quem havia de dizer que nos 80 anos do desembarque do Dia D, nos 50 anos da nossa democracia, nos 66 anos do projeto europeu, nada está garantido. Isso é que é perigoso.

JMD - Para que cenário nos devemos preparar?

- Nestes últimos tempos temos andado a falar do serviço militar obrigatório. Eu nasci em 1973 e já não fui sequer à inspeção. Não tive essa experiência e gostava de ter tido. Tenho muito respeito pelas Forças Armadas, pelo que significam e qual a importância que devem ter e ser-lhe reconhecida. Quando agora falamos da questão do serviço militar obrigatório, se deve ou não deve ser reposto, o que digo é o seguinte: falta ao nosso país qualquer coisa por onde passemos todos, que nos uniformize em termos de cidadania. Vou dizer isto - e espero que não seja polémico: antigamente existiam duas instituições que faziam isso. As Forças Armadas e a Igreja. Muitos dos quadros médios e superiores do nosso país, durante muito tempo, passaram pelas Forças Armadas e Seminários. Era transversal do ponto de vista da sociedade. E hoje, e peço desculpa por dizer isto, não temos nenhuma circunstância que faça isso. A escola não o faz. A família também não o faz. O Desporto, se calhar, pode fazê-lo…

JMD - De vez em quando há um 10 de julho de 2016 e isso acontece.

- Quando foi o Euro-2004, foi no contexto do futebol e por iniciativa de um cidadão brasileiro que foi recolocado no coração dos portugueses o orgulho pela bandeira e pelo hino nacional. Que vergonha! E não poder cantar o hino na escola e aprender, porque é fascismo ou não sei, que disparate! Hoje em dia temos poucas possibilidades de proporcionar ao nosso cidadão qualquer coisa transversal e comum, de maneira a que, no futuro próximo, quando acontecer qualquer coisa e seja necessário invocar a cidadania, ela venha ao de cima.

NÃO TER VERGONHA DE FUTEBOL, FÁTIMA E FADO

VS - É interessante porque o desporto e a religião, aí, tocam-se. E, ao mesmo tempo, tocam-se também naquilo que é o desejo de transcendência.

- É preciso pôr de lado o fantasma do Fado, de Fátima e do Futebol, porque, venha quem vier, esse é o nosso ADN e não devemos ter vergonha dele, essa é a nossa identidade.

JMD - Por alguma razão, Eusébio e Amália estão no Panteão Nacional…

- É o nosso ADN e não devemos ter vergonha, mas sim respeitá-lo. E quem não concorda também deve respeitar. Tive oportunidade, com a Jornada Mundial da Juventude, de percorrer o país todo com os símbolos da Jornada. O norte, o sul, o interior, o litoral, o continente e as ilhas. Aliás, agradeço às Forças Armadas, porque pudemos ir ao Corvo, a Santa Maria e às Flores, o que mais uma vez provou o papel importante das Forças Armadas na coesão territorial. E o que é que eu encontrei no país real? Primeiro, um país muito melhor do que o país mediático. O país mediático, que, às vezes, é negro. Mas o país real é muito melhor. Depois, verifiquei que 98% das notícias falam de 10% de Portugal, e de uma forma negativa. E quando nós vamos ao Portugal real, o que é que nós vemos? Quem é que levanta o ânimo e estimula e ajuda? O futebol local e regional, por exemplo. Se o futebol no nosso país fechasse portas, milhares e milhares de jovens ficariam sem a possibilidade da prática desportiva, com a importância que isso tem, em tantas regiões do nosso país, para aquilo que é a formação, a cidadania e até para estruturar as próprias vidas. Em muita geografia do país, são essas associações culturais, recreativas e desportivas que dão resposta a muito daquilo que é o essencial, e que o próprio Estado já não consegue, a escola formal, propriamente dita, já não consegue. A mim não me repugna nada que a minha identidade tenha esses cravos, e cravos até fica bem, esses cravos de Fado, de Fátima e de Futebol, daquilo que é a nossa identidade cristã e católica, sem vergonha, sem complexos, respeitando aqueles que pensam de modo diferente.

JMD - Mas o Estado é laico…

- O Estado é laico, e eu também quero um Estado laico, mas as pessoas não são. Respeitar o outro é respeitar se for cristão, se for católico, se for muçulmano, se for judeu, ou se não for coisa absolutamente nenhuma. Respeitar, seja o contexto qual for, numa permanente tentativa de construir pontes. Por exemplo, o que é bonito no futebol? É estarmos numa bancada, com milhares de pessoas de condições sociais diferentes, de religiões diferentes, onde está o patrão e o empregado, unidos por uma causa. Lembro-me da emoção que senti quando estive no Terceiro Anel do antigo Estádio da Luz, na final do Mundial de juniores, entre Portugal e Brasil.

JMD - Em 1983, ao serviço do Benfica, tive oportunidade de estar numa receção à equipa, no Vaticano, em que o Papa João Paulo II falou durante muito tempo em português, enfatizando a responsabilidade dos jogadores como modelos para a juventude. Hoje, com a mediatização, essa responsabilidade aumentou exponencialmente…

- Sim, no futebol e em tantas outras áreas da nossa sociedade, há um perigo para a vida dos jovens, que é terem, a certa altura, como objetivo de vida serem como uma estrela que os cativa, que é muito Hollywood e muita construção, quando, no fim, somos todos carne, osso e espírito. Estive numa visita pastoral num clube local, onde havia um cartaz que dizia: ‘Entrada Proibida Aos Pais’. Fiquei surpreendido, e perguntei a razão ao presidente do clube, que me respondeu: ‘Nem queira saber. É que todos veem nos filhos um Cristiano Ronaldo. E são, para os filhos, de uma violência impensável. Porque estão a olhar para eles e a ver o carimbo da Segurança Social, do Banco, de um futuro garantido, porque está ali outro Cristiano Ronaldo, que não tem culpa nenhuma disso.

VS - Em sua opinião, o que é que se passa?

- O que é importante deixou de estar no foco. Já ouvi várias entrevistas do Ronaldo e ele não é bom apenas porque sim. Há muitíssimo trabalho e sacrifício...

JMD - Não deve ter sido fácil para um miúdo de 11 anos sair da Madeira e vir morar sozinho para Lisboa…

- É muito importante que estas figuras possam ser referência para outros se esforçarem para serem, quando forem grandes, médicos, professores, para serem isto ou aquilo. Mas vivemos num capitalismo desregulado, pouco humanista. Tenho falado aos pais, quando vou às escolas, por exemplo, sobre aquilo que leva os jovens a, permanentemente, quererem aceder à cirurgia plástica, para tirar e para pôr, para aumentar e para modificar, para se aproximarem mais de alguém. É uma coisa que não lembra a ninguém, com o sofrimento que implica e com os graves riscos que acarreta. Mas hoje há o quero ser ou quero ter. A velha dicotomia do ter e do ser.

VS - E no mundo do Desporto ainda há o parecer…

- Estas figuras continuam a ser, para uma quantidade muito significativa dos nossos jovens, uma referência. E é importante que essas próprias figuras tenham consciência disso.

DOS ESCUTEIROS A CARDEAL OU AS SURPRESAS DE DEUS

JMD - Quando entrou na vida eclesiástica, imaginou-se chegar onde está, e imaginou-se, espero que seja daqui a muitos anos, a um dia entrar na Capela da Sistina para escolher um novo Papa?

- Olhe que não, olhe que não, como dizia o outro. Fui para o Seminário provocado e desencaminhado pelo chefe dos escuteiros, José Teixeira, que graças a Deus ainda vive. Fui, depois saí, mas fiquei contaminado com o bichinho, e depois regressei, e tudo tem acontecido contra qualquer tipo de possibilidade. Ponho-me a pensar no miúdo de Leça do Balio, o sétimo de uma cadeia de irmãos, o mais novinho, o primeiro que estudou, o primeiro que teve a possibilidade de ir para a escola, e tal nunca na vida me passou pela cabeça. É algo que vou descobrindo todos os dias e desafio os leitores a acreditar que Deus providencia. Se fizermos a nossa parte, Deus providencia e surpreende-nos. O Papa Francisco está sempre a dizer isso, que nos abramos às surpresas de Deus. E há aquilo que dizia o nosso padre Cruz: ‘Quem quer o que Deus quer, tem tudo quanto quer’. Não é, eu quero, eu quero, como um miúdo a bater com o pé no chão, é eu quero o que Deus quiser. E a partir daí, a bola rola…

VS - Estamos muito perto dos Jogos Olímpicos, que cada vez mais são impregnados de um capitalismo selvagem. Começam a ser menos esperança como símbolo de paz?

- Também penso assim. Aliás, há dias, o Cardeal Tolentino Mendonça [prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, na Cúria Romana], anunciou um congresso ou uma reflexão sobre a Fé e o desporto, no contexto dos Jogos Olímpicos de Paris. Agora, para a nossa geração, os Jogos Olímpicos eram um símbolo de alguma coisa muito importante. E até temos, na história contemporânea dos Jogos, incidentes e acontecimentos, alguns graves, de mortes e atentados, ou então de simbolismo, daquilo que eram gritos da humanidade em relação à guerra, ou a tantas coisas que, infelizmente, iam acontecendo nesse tempo. A verdade é que quanto mais a gente entra nesta modernidade, temos mais plástico, mais faz de conta, mais glamour, e às vezes menos desporto propriamente dito. O foco deixa de estar no jogo, ou no desafio, mas naquilo que acontece lateralmente.

FRANCISCO E A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL AOS BOCADOS…

JMD - Este clima em que vivemos, a guerra agora entre a Israel e o Hamas, a invasão da Ucrânia pela Rússia, a tensão entre a China e Taiwan, tudo isto é o anúncio de tempos apocalípticos que se aproximam?

- O Papa Francisco tem falado numa terceira guerra mundial aos bocados. E quando ele disse isso pela primeira vez, as pessoas estranharam. Acho que agora já não estranham. E tenho receio, ainda hoje, porque as guerras mundiais podem começar por incidentes. Estou sempre a ver quando é que o espaço aéreo, não sei de quem, é invadido, ou cai um míssil, por acidente e, segundo os estatutos da NATO, se um dos nossos é atacado, automaticamente, todos estamos em guerra. E isso pode acontecer a qualquer momento.

JMD - E lá entra a questão das Forças Armadas…

- Sei que as novas gerações não apreciam um discurso de defesa, de armas, de Forças Armadas. É tudo muito poético, paz e bem, alegria e fraternidade. Mas a realidade está a dizer-nos o contrário. Pertencemos à União Europeia e à NATO, e temos responsabilidades, como país. Nós já não temos a padeira de Aljubarrota, que está idosa e a pá deve ter caruncho. Às vezes é preciso que os portugueses se sentem à mesa e falem das coisas que são importantes. Livremente. Da defesa, da economia, da segurança social, da saúde, das privatizações, dos mercados, do desporto, e que o façam sem tabus.

VS - Mas como é que se ultrapassa o complexo da guerra colonial e daquilo que depois lhe sucedeu? Ou seja, parece que a única solução possível é haver um serviço militar obrigatório, seja da forma que for, e há exemplos noutros países. O problema é tocar nesse ponto e discuti-lo de uma forma descomplexada, aberta e transparente. Porque a política só quer discutir o que não vai afetar muito os ouvidos da maioria, e este tema é politicamente incorreto.

- Eu não estou a dizer, para que fique bem claro, que a solução dos contingentes das Forças Armadas se resolve com o serviço militar obrigatório. Resolve-se, isso sim, se a carreira militar for atrativa. Ouvi o general Ramalho Eanes, que percebe mais do que eu, dizer que, hoje em dia, o militar tem uma formação muito high-tech. Isto hoje não é só chumbo e não sei quê. Portanto, o contingente das Forças Armadas tem que ser alimentado por cidadãos que livremente desejem integrá-lo, e para que isso aconteça deve ser atrativo, do ponto de vista de carreira, economicamente falando, para a sua família e para o próprio. Outra coisa é que os cidadãos, obrigatoriamente, passem por lá.

VS - Depende das circunstâncias…

- Sei que isto não é unânime, mas é importante falar-se. A malta vai xis meses para Erasmus, e não morre. Mete três meses para não sei quê. Então, não é possível, na minha vida de adulto, dar ao meu país um ou dois meses? Acho que é possível, porque há a possibilidade de um dia ser possível, mesmo contra a vontade. Será que não é possível olhar para os outros países, ver os bons exemplos, e dizer que em Portugal vamos começar com os que quiserem. E por exemplo decidir que quem nascer a partir de agora, quando chegar aos 18 anos, tem de fazer isto ou aquilo, não numa perspetiva de alimentar o contingente de carne para canhão, mas numa lógica transversal a homens e mulheres? Eu, como não fiz tropa, não faço a mínima ideia da cadeia do comando, das patentes, das responsabilidades ou das competências. E se um dia há um cataclismo no nosso País e é preciso que a sociedade responda à hierarquia, ao comando, à autoridade, e nos deparamos com um vazio total? Nós estamos, e não sei se existe um maestro por trás ou não, a assistir, nos últimos tempos, a uma dinamitação de tudo o que é autoridade institucional. Nos professores, na Justiça, nas Forças Armadas, nas Polícias, na Igreja, na classe política. E no fim o que é que vai ficar?

JMD - Em política, o que parece, é…

- Eu pergunto quem, daqui a algum tempo, é aceite pela sociedade como de confiança, quem é que a sociedade respeita como autoridade investida politicamente? Todos os dias, nas redes sociais e afins, há um tiroteio cruzado a denegrir, a mentir, a caluniar, e a verdade é um pormenor que não interessa nada.

A RECONQUISTA DA CONFIANÇA

JMD - É preciso a coragem do Papa Francisco para que a Igreja consiga ultrapassar os problemas que a tem abalado há alguns anos esta parte?

- Sim, mas nós temos feito um caminho. A grande questão é se não se devia ter feito há mais tempo, mas para isso não há a solução, chorar sobre o leite derramado, não leva a nada. O Papa chamou o Senhor Cardeal Patriarca Manuel Clemente, em janeiro ou fevereiro de 2019, e convocou todos os presidentes das conferências episcopais do mundo para uma reunião em Roma, para se tratar com seriedade, e definitivamente, do assunto. Porque o Papa João Paulo II e o Papa Bento XVI foram dando passos, fazendo coisas, mas era chegada a hora, dizendo isto à Porto, de pôr o guizo no gato. Quando o Senhor D. Manuel chegou a Lisboa falámos, e em abril de 2019 foi criada da a primeira Comissão de Diocesana de Proteção de Menores. E a Igreja portuguesa fez caminho, e foi lançada a Comissão Pedro Strech. Podemos discutir, discordar, mas fez-se. Entretanto, todas as Dioceses criaram Comissões Diocesanas para lidar com a questão. Quando terminou a Comissão Strech, foi criado o Grupo Vita, que está em funções, e, na última reunião, de abril passado, foi decidido que a Conferência Episcopal assumiria as tais compensações, que não são indemnizações, porque indemnizações têm a ver com tribunais, com sentenças, com condenações. A Igreja Católica de Portugal disponibiliza-se a ir em subsídio daqueles que são os que nunca deviam ter sofrido, e que foram as vítimas de sacerdotes ou de outros agentes pastorais, para tentar, paliativamente, diminuir um pouco daquilo que foi o seu sofrimento, certamente, profundo. Este é o caminho que estamos a fazer, e acredito que dentro de mais algum tempo, estaremos melhores.

VS - O que o leva acreditar nisso?

- Em primeiro lugar, porque as vítimas foram respeitadas e colocadas no seu lugar. Em segundo, fomos melhorando os protocolos e as metodologias, porque, no meio disto tudo, também surgiram muitas calúnias, muitas mentiras, e muitos sacerdotes sofreram porque se viram, de um momento para o outro, injustamente acusados disto e daquilo, perante a opinião pública. Há que dizer que nos milhares de sacerdotes portugueses, noventa e muitos por cento são homens honrados e de referência das comunidades. Infelizmente, existiram sacerdotes que não foram dignos daquilo que eram os seus votos e as suas promessas a Deus e à comunidade. É preciso separar um bocadinho as coisas e fazermos um caminho de reconquista da confiança que foi beliscada em relação à Igreja.

JMD - A instabilidade que vivemos vira mais as pessoas para a Fé? E a propósito de Fé, o que pensa de uma frase que Fernando Santos, ex-selecionador nacional, usava muito, quando dizia: ‘Em Deus tenho Fé, no futebol, de vez em quando, tenho umas fezadas.’

- Todos nós somos feitos com o mesmo barro, e quando estamos aflitos, não há santos que cheguem. É normal que na adversidade as pessoas se agarrem a tudo mais alguma coisa. Tenho muitos testemunhos de gente que fez coisas inimagináveis, fora daquilo que é aceitável no convívio são. Foram à bruxa, foram não sei onde, e fizeram não sei o quê, porque ficaram cegas no sofrimento. Se eu tenho um filho que está numa má situação e me dizem que há um fulano que faz uma mezinha que resolve tudo, eu vou lá. E pago, vou até ao fim do mundo. Isso é humanamente compreensível. Portanto, temos que ajudar as pessoas no dia a dia da sua vida, para que não sejam vítimas de ratoeiras e de chicos espertos. Quando somos jovens, temos saúde, dinheiro e uma carinha laroca, não precisamos de Deus para nada. Somos os maiores. Quando alguma delas começa a falhar, ai Jesus, ai meu Deus…

JMD - Em relação à fezada?

- É mesmo isso que o Fernando Santos diz. É preciso não brincar com coisas sérias, e para o futebol fica a fezada.