Os especialistas em futebol… (artigo de Manuel Sérgio, 306)

Espaço Universidade Os especialistas em futebol… (artigo de Manuel Sérgio, 306)

ESPAÇO UNIVERSIDADE25.08.201915:31

Estive, durante três vezes, no Pantanal, no Mato Grosso do Sul. Maravilhoso espetáculo esse que a Natureza nos oferece. Onde os animais, os pássaros, as flores, as árvores observam, cantam e falam. Face à heterogeneidade sublime das suas vozes, lastimo não saber entendê-las. Mas de um ponto tenho eu a certeza: não me falariam só  do Pantanal. Quem lida de perto com tanta beleza enxerta sonho, em tudo o que diz, ou seja, diz poesia. Para o poeta Daniel Faria: “O poeta é o que descobre. Isto é, o que vê primeiro”. E, se vê primeiro, no meio de tanta cor e tanto canto, uma razão lhe assiste: saber é uma das formas de presença de alguém, ou alguma coisa, no seu mundo. Por isso, é o agente de uma área do conhecimento concreta que dela mais sabe. Há pouco, António Simões, um dos cinco elementos de uma linha avançada como, no meu pensar, não houve outra, no nosso país. José Augusto, Eusébio, Águas (Torres), Coluna e Simões integraram uma equipa que, durante três anos consecutivos, disputou o jogo final da Taça dos Clubes Campeões Europeus. E tenho mais a dizer: José Augusto, Eusébio, Águas (Torres), Coluna e Simões eram considerados, nas suas posições, por muitos e sábios críticos do futebol, os melhores da Europa, naqueles anos distantes. Vi jogar o Albano (dos “cinco violinos”) e o António Simões e o Paulo Futre e o Chalana e não “temo e tremo” ao adiantar sem reservas que o Albano e o Simões eram dois jogadores de futebol superdotados que, se mais longe não chegaram, tal se deve ao facto de não poderem beneficiar do progresso material e humano, científico e tecnológico, evidentíssimo hoje na indústria (e no mercado) do futebol. Um exemplo: não me atrevo a negar que o Cristiano Ronaldo seja o melhor jogador, de sempre, do futebol português. Mas como omitir que o Ronaldo, com a sua vontade, verdadeiramente imparável e admirável, de transcender e de transcender-se, beneficiou de condições, de toda a ordem, que o Eusébio desconheceu?

Mas, dizia eu, que o meu Amigo António Simões me confidenciou que ele e até antigos jogadores de futebol, já carregados de anos, aplaudiam uma afirmação da minha autoria: “Quem não pratica não sabe, mas quem só pratica repete”.  E questionou-me: “O que é, para o Manuel Sérgio, um especialista em futebol?”. Respondi-lhe: “Para mim, o melhor especialista é o que pratica e o que melhor sabe teorizar a prática”. Para mim, de facto, não há teoria que não deva radicar e ancorar na prática, porque é a prática que nos ensina que precisa de um sério trabalho interdisciplinar, para poder evoluir – trabalho interdisciplinar, com pregnância emocional, ou mesmo afetiva. “Mais do que palavras, a atitude ganhadora requer atitudes e comportamentos perseverantes e ambiciosos, procurar melhorar sempre e apontar objetivos que nos forcem a uma superação constante. Trabalhar arduamente, estabelecer relações pessoais próximas, baseadas na confiança, apontar objetivos parciais e globais ambiciosos, mas alcançáveis. Revelar espírito de sacrifício, ao serviço da organização, preocuparmo-nos com os outros, ganhar com humildade, perder com dignidade, transformar a generalidade dos acontecimentos negativos em positivos. E, acima de tudo, gostar muito do que fazemos” (Jorge Araújo, Tudo se treina, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 62). Tudo é complexo, designadamente o que é humano e, portanto, o especialista em futebol é o estudioso que se nos apresenta sob a forma de um  protesto: contra um saber que separa a teoria da prática, ou a prática da teoria; contra uma teoria que descura o paradigma (no futebol, como no desporto em geral, uma nova ciência hermenêutico-humana) onde o futebol pode estudar-se e compreender-se; contra um saber universitário tão compartimentado, fracionado, dividido e subdividido, que os alunos sabem mais o que fazem, pela leitura dos jornais, do que pelas aulas e pela bibliografia aconselhada pelos professores; contra o conformismo (ou esclerose) das tradições, de hábitos recebidos, de métodos que no tempo se perpetuam.

No JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias) de 14 a 27 de Agosto de 2019, dirigido pelo jornalista e escritor José Carlos de Vasconcelos, que faz, como poucos, do jornalismo um género literário – no JL, escrevia eu, encontrei uma crónica do Afonso Cruz: ”Há uma ideia recorrente, partilhada amiúde, que compara o presente com o passado, tentando demonstrar que hoje existe uma degradação moral, económica, social, artística e política (falta de valores, de orientação, de causas, de ideais, de humanidade, de salubridade, etc.), uma corrupção generalizada que não acontecia no passado, lugar mítico onde tudo transcorria com a calma necessária à edificação humana”. E não foi assim. A partir das décadas de 30, 40 e 50 (já eu por cá andava) os limites morais de comportamentos pouco aceitáveis também não  se respeitavam e os pecados de imoralidade e devassidão e os atentados à justiça social e aos direitos humanos eram mais que muitos. Quantas vezes o passado não exala a mórbida tristeza dos túmulos? Qualquer cultor escrupuloso da hermenêutica das fontes sabe que assim é. Onde há Homem, há possibilidades de erro e… muitas vezes, com rastro perdurável! No entanto, as comunidades humanas são de um tipo completamente distinto das restantes comunidades animais – o Homem é um ser de Cultura e só em Cultura se desenvolve e pode viver. O conceito de Cultura não se confunde com o de Natureza. A Cultura é inseparável do Homem, a Natureza é anterior ao Homem. Assim, o Homem é pela Cultura, que é trabalho seu, que pode conhecer-se. O Desporto é uma das expressões da superação da Natureza em Cultura. Por tal razão, a importância da transcendência (física, moral, intelectual, emocional, etc.) no mundo do Desporto. Repito-me: fazer Desporto é transcender a Natureza e fazer dela Cultura. Teilhard de Chardin observou que “a matéria destila espírito”. Também no Desporto a matéria destila espírito, quero eu dizer: no Desporto, transcender-me é um ato de transformação da Matéria e da Natureza em Espírito. Direi mesmo: a transcendência é a dimensão essencial, o atributo específico do ser humano.

Do que venho de escrever se infere a minha humilde mas constante interpelação, para que o Desporto e portanto o Futebol se estude como ciência hermenêutico-humana e se entenda como Cultura. E, portanto, que o especialista em Futebol estude não só a  técnica e a tática e a metodologia do treino e saiba dialogar, em trabalho interdisciplinar, com o que constitui a complexidade humana. A eficácia, a produtividade, no Futebol, precisam de Razão e de  Fé, de Memória e Profecia, de Natureza e Cultura, ou seja, exige imediatamente não só a mudança ao nível das estruturas materiais mas, sobre o mais, mudança ao nível das mentalidades. A maior revolução no Desporto (e no Futebol, portanto) está ainda por fazer-se. E não passa pela conceção do Ser de Parménides, ou da Ideia de Bem de Platão, ou do Motor Imóvel de Aristóteles, ou do Uno de Plotino, etc., etc. Passa, de facto, pela metodologia interdisciplinar que consiga reconstruir a unidade do humano, como ciência, filosofia e teologia (porque no Futebol não há Razão tão-só, mas Fé também). Só quem saiba dialogar com a complexidade humana e oriente este diálogo, rumo à transcendência da Natureza em Cultura e faça ainda deste diálogo um espaço à reflexão filosófica e teológica – procura as condições ideais para o exercício de um “especialista em Futebol”, que o treinador é, logicamente. Portanto, um departamento de futebol organiza-se, salvo melhor opinião, como uma equipa de trabalho de vários especialistas, em diversas áreas do conhecimento, liderada por um treinador de futebol, porque as decisões últimas são suas e coadjuvada por mais dois ou três treinadores de futebol. A metodologia interdisciplinar não permite uma ordem hierárquica dos diversos especialistas. Mas uma ordem “concêntrica”, pois que todos têm igual importância.

De referir ainda que a equipa de trabalho não deverá ser muito numerosa, nem demasiado restrita, para não burocratizar-se e poder refletir, em termos da sua própria disciplina, sobre as contribuições dos outros especialistas. Fazendo iluminar a prática do futebol, com a luz vinda de vários quadrantes, quero reiteradamente lembrar que é nas ciências hermenêutico-humanas que nos situamos. E que, por consequência, há que estabelecer a diferença entre “elemento” e “relação”. Que o mesmo é dizer: não há elemento, sem vínculo relacional e não há relações, sem elementos – elementos e relações, que se deduzem de um novo conceito de Homem e de um novo conceito de Desporto. Defino o Homem (com muito atrevimento à mistura, reconheço) como um ser aberto à transcendência que, na consciência dos seus limites e pela motricidade, a persegue. O Desporto, por seu turno, assim o defino: é um dos aspetos da motricidade humana, integrado dos elementos seguintes: jogo-movimento-agonismo-transcendência-instituição-projeto. Nesta definição de Desporto, ressalta uma primazia do elemento antropológico sobre tudo mais porque, no meu modesto entender, é partindo do ser humano que pode fazer-se ciência e filosofia e teologia… no Desporto! E falar em tática, em técnica e em metodologia do treino.  Já na minha tese de doutoramento, eu escrevia que a motricidade supõe: a existência de um ser não especializado e carenciado, aberto ao mundo, aos outros e à transcendência; e, porque aberto ao mundo, aos outros e à transcendência; e, porque aberto ao mundo, aos outros e à transcendência e deles carente, um “ser práxico”, procurando encontrar (e produzir) o que, na complexidade, lhe permite a unidade e a realização, e, porque ser práxico, com acesso a uma experiência englobante, agente e fautor de cultura, projeto originário de todo o sentido. Não é ao nível do puramente animal, mas do intrinsecamente cultural, que o Homem pode viver e sobreviver. Esta é a situação epistemológica de qualquer problema da problemática desportiva. Do Benfica-Porto ocupar-me-ei, na próxima semana. Estou muito próximo deste jogo para poder fazer uma crítica, com o mínimo de lucidez.

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto